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No dia 25/4/16, após termos terminado uma pequena reunião especial, realizada na FUNCEA, convocada pelo presidente da Academia Valenciana de Educação, Letras e Artes – AVELA –, Moacir Saraiva, da qual participamos, Alfredo Gonçalves de Lima Neto e eu, ao final desta, já na saída de ambos, Moacir falou que ia contestar, de alguma modo, um artigo que eu escrevera, dias passados, para o nosso jornal Valença Agora, cujo tema era a morte. Aliás, o título era “A Inflexível Morte da Vida”.

Dizia-me gentilmente o amigo Moacir que, embora tenha achado o artigo bom, iria contestá-lo por ele (talvez por ser católico militante) pensar que o maisapropriado seria cantar a vida, jamais a morte. Suas palavras não foram textualmente estas, registo apenas o sentido. Ademais, no meu artigo a morte não era enaltecida. Mas isso é irrelevante. Continuemos, pois.

Hoje pela manhã, a primeira notícia que recebi, via zap, foi a do falecimento do meu irmão Herber, nascido em 1930, estando, por tanto, com 86 anos. Herber, como ele assinava, ou Ebinho, como todos nós, seus outros seis irmão, o chamávamos, era meu irmão preferido, uma vez que, sendo seis anos mais velho que eu, defendia-me em todas as situações. Poderia ainda falar mil coisas para ressaltar seu caráter generoso, de pessoa muito solidária e de postura social discreta, que tinha, por isto mesmo, construído um sólido e alto muro em torno de sua vida privada, preservando-a de disse-me-disse familiares. Mas estes detalhes só interessam à família, por isso prefiro relembrá-lo como ardoroso torcedor do Botafogo Futebol e Regatas (clube pelo qual torcem meu amigo Demorce Carvalho e meu cunhado Aneal Anchieta, mas isto também não vem ao caso), cuja sede é justamente no bairro que ele morou no Rio de Janeiro desde o final da década de 40, quando lá chegou com outro dos meus irmãos, Kleber, já falecido, migrando para a então capital da República.

Sendo uma pessoa muito discreta, Herbernão se metia na vida de ninguém, tampouco deixava brecha para que alguém se intrometesse na sua. Mas, sobre isto já falei, não havendo necessidade de repetição. Por isso, prossigo.

Outra lembrança grata que guardo de Ebinho foi por ele ter me salvado a vida em duas ocasiões. Em uma fazenda que meu pai possuía em Ipiaú, então chamada de Rio Novo, estava minha avó materna lavando roupa– possivelmente fraldas minhas, que naquele tempo as usava, pois tinha por volta de dois ou três anos, quando despenquei – no poço centrar de uma represa (presa, como chamamos na Bahia) que meu pai tinha construído para o gado beber água – por um descuido da minha avó. Os seus gritos atraíram meu irmão e foi salvo.

Em outra ocasião, estávamos um grupo de meninos brincando em uma roça de cacau. Para quem não conhece este tipo de plantação, não pode imaginar a beleza que é. O cacaueiro de uma altura padrão, plantado sob a parte restante da Mata Atlântica (ou, na falta desta, sob plantações de bananeira tipo da prata), normalmente em lugar aladeirado, atapetado de folhas secas, como se tivesse a denunciar um eterno outono – plantava-se o cacaueiro em terreno aladeirado para facilitar o recolhimento das cabaças maduras, já tiradas do pé –, sendo, desta forma, lugar ideal para criança brincar. E essa brincadeira consistia em se descer correndo e se atirar sobre as folhas secas, em uma pilha adrede preparadas.

Em minha memória (porque não acredito em outras vidas e em outros mundos, em lugares onde os mortos se encontrem, principalmente na forma que é amiúde apregoada, aqui e ali, por crentes e por todos aqueles que – como eu – temem morrer) digo que meu irmão possa estar em algum lugar velando por minha segurança nesse momento. O sepultamento do meu irmão e amigo será hoje, 26/4/16, às 14 horas – recebi a triste notícia hoje pela manhã – e fico a meditar que se trata de mais um amigo que vai desta para o esquecimento.

Digo desta forma porque li algures que só se morre definitivo e completamente quando se é olvidado. E como cedo ou tarde todos os nossos entes queridos acabam sendo esquecidos, pois este fato é inexorável, como a própria morte, fico a imaginar quando será a minha vez de seguir, não para fazer parte do metabolismo das minhocas e outros vermes, tampouco para o céu da boca da onça, como dizemos no sertão, mas em direção ao forno crematório – pois esta é a minha vontade e decisão.

Esta fatal possibilidade – e nela o que mais me preocupa – é a forma como a minha morte vem se dando, por etapas, o que ocasiona a morte em si, não me é relevante ou impressiona, mas o conteúdo de solidão e isolamento que ela, a morte, nos cerca e nos vai acossando a todos, de modo cruel e inflexível, isto, sim, muito me intriga.

Todas as crianças, com a idade regulando com a minha, com que brincava na Fazendo Veneza, do meu avô, em Jequié, próximo a Aiquara, quase desapareceram completamente de minha mente, significando isto que estão “quase” mortos porque, ademais, não me lembro do nome da maioria delas. Os colegas da escola Castro Alves, em Jaguaquara, e outros meninos, junto com os quais fazia estripulias – e as fiz muitas – (repito!), quase desapareceram completamente também de minha mente, significando isto que estão “quase” todos mortos porque, ademais, igualmente não me lembro do nome da maioria deles. E desta forma poderia repetir este período várias vezes – cansaria o leitor e não esgotaria a relação –, falaria de Nilópolis, Quintino Bocaiuva, Marechal Hermes, Honório Gurgel, todos estes lugares, subúrbios do Rio do Rio de Janeiro, e constaria que a maioria absoluta das pessoas que conheci, com quem travei relações, senão de amizade, pelo menos cordiais, e não lembraria o nome de muitas delas. Até os colegas dos quarteis onde servi – que foram dois no Rio, mas com um número considerável de sargentos, não lembraria os seus nomes, sem incluir neste “considerável número” os colegas que, como Ly Adorno (morto recentemente), mantiveram estreitas relações de amizade comigo, de muito poucos desses colegas recordo os nomes.

Até os nomes das namoradas, a maioria delas, não lembro mais. E esta constatação deixa-me entristecido, levando-me diretamente a recordar da música de Ataulfo Alves, cuja letra dizia: “Eu daria tudo que tivesse/ Pra voltar ao tempo de criança/ Eu não sei pra que a gente cresce/ Se não sai da gente essa lembrança// Aos domingos, missa na matriz/ Da cidadezinha onde eu nasci/ Ai, meu Deus, eu era tão feliz/ No meu pequenino Miraí// Que saudade da professorinha/ Que me ensinou o beabá/ Onde andará Mariazinha/ Meu primeiro amor, onde andará?// Eu igual a toda meninada/ Quanta travessura eu fazia/ Jogo de botões sobre a calçada/ Eu era feliz e não sabia”.

Meu primeiro amor, sem dúvida, com quem troquei um primeiro (e mal dado) beijo, foi Joselita, mas eu era ainda uma criança, não senti nenhum formigamento. Esta sensação indescritível deu-se mais tarde – e com ela não troquei nenhum beijo, sequer peguei na mão –, mas mesmo à distância todas as formigas do mundo, junto com as abelhas e os marimbondos, aguilhoaram-me. Chamava-se Olga e acabou sendo minha colega de escola, isto em Jaguaquara. A aproximação de colega realizou o milagre de acabar aquela paixoneta, que considerei aguda.

Mas, enquanto espero a matéria do meu amigo e presidente Moacir Saraiva, que até agora ainda não a escreveu, prometo continuar com este tema em outra oportunidade.

 

Valença, BA, 26 de abril de 2016

 

 

© Araken Vaz Galvão

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