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De Melbourne, Amália Grimaldi. 2016

Para o Confrade Dr. Mustafá Rosemberg de Souza

Valença, novenas e incensos. Cores de papel crepom em suas rezas ensaiadas - Promessas banais. O firmamento do templo revela rostos de papel e serafins maltratados. Ah, essas estrelas caídas, as que ainda me restaram! Presença do que sou.

Em Valença cresci mulher forte e ainda guardo com firmeza a chave mestra das suas muitas almádenas. Ainda escuto o chamado estimado e o falsete cantado naquela voz de muezim... E dessa sua magia constelar, barcos e saveiros. Correnteza em rancor de ventos brabos - Temperamento variável. Assisto ao vento brando o bailado da intempérie que se configura na elegante dança de verdes palmas. Traz o coqueiral certeza de chuvas que em breve viriam no bojo da tempestade tropical. Esse fora meu tempo de sonhar. E de em paz dormir. Dormir para depois sonhar. Sonhar para acordar plena.

Valença, ao azul de quando. Belo pano de fundo. Um descansado céu. Aquele vasto mar de dunas alvas e ondas bravias a bater forte na areia. Som de trovão. Lá no Guaibim enxergo pintura de mestre, tela de cores inimitáveis. Adorno azul de emoção restaurada.  Caras lembranças, por vezes reconfortantes, quando não doloridas pela saudade. Ao sol de muitos outros verões, a praia, o coqueiral e a brisa. E o céu, em recortes de nuvens densas sempre a ressaltar o azul intenso. E, quando na noite morna,em sua terna magia sempre dona das estrelas, visão condescendente. Rica imaginação. Ornamento de tempo bom.

A cidade e o Rio Una – simbolismo, nexos e plexos na complexidade dessa sua orgânica matéria. Divisor de águas – o antes e o depois, a refletir medos comuns. E, nessa sua relação de convivência, implícita viagem na paisagem e história. Seguro testemunho de um tempo. Inventário de grande valor.

Andar pelo Calçadão, encontrar amigos e, sob a marquise da loja de calçados poder desaguar pensamentos contidos - Ah, paredes têm ouvidos! Já dizia minha amiga Celeste Martinez.

Rostos, muitos rostos. Rostos morenos, rostos negros. Rostos estrangeiros. Rostos nativos. Muito calor, gente suada. Acima de tudo gente que sabe agradar. Assim é viver-se em Valença. Muitos amigos aí deixei.

 

Em Valença conheci um intelectual fascinante. Eloquente ao extremo, homem da Ciência e da Literatura, predestinado a escrever poemas de amor e dessa maneira a expressar sua grande paixão pela vida: Mustafá Rosemberg de Souza. A navegar por águas caudalosas de rígidos princípios humanísticos, também absorveu os ensinamentos de Hipócrates. Além de penetrar pelos meandros da Medicina também alcançaria as terras férteis da Literatura. Doutor-escritor, tão verdadeiro, assim como mostra nos apaixonantes poemas que escreve. E, assim o vejo a seguir pleno, a nutrir recônditos vales de solitude predestinados. E, no conflito dessa sua alma poética, nos faz sentir o poeta toda a sua emoção. A defender com orgulho o valor de suas odes, os ruídos dessa sua vibrante alma, se permitem ondular em cores próprias, e lhes permitem voar, muito além, para além de imediatas consonâncias.

Valença. Sombras e luzes. Sol necessário. Impunidades, estas se mostram desiguais, em seus volumes legais. Ouve-se voz inquietante. Um grito. Um pedido de socorro. É a ira do ser arruinado – pelo ódio ou pelo amor. Mas, nem tudo se acabou.  Resta-lhe ainda etéreo consolo, transparência comum naquele vasto céu azul de contentamentos, até onde a vista pode alcançar. – Grandeza de todos. Afinal, Nossa Senhora do Amparo, lá do alto da colina parece ouvir rogos de maltratados.

Valença, oráculo de lamparina votiva.  Hoje, nessa paisagem de contradições retorno à realidade de espaço limitado.  Mas, resiste ainda uma certa ilusão de tempo fértil. Detenho-me na visão, naquelas garrafas de dendê, ícone sagrado da culinária baiana lá na cozinha familiar em prateleiras de satisfação. Pedestal necessário. Emulsão essencial, no azeite de dendê enxerga-se cores de liturgia sagrada. Segue a ungir criaturas na fé livrando-as até do mau-olhado! Dendê tem cheiro sabor e cor, nutre saberes que nos foram passados lá na cozinha da vovó.  Remete-nos ao paladar de fartas moquecas. Aí, nesse orgânico berçário, pleno, o ciclo da vida  se renova. É quando necessidades em conflitos moldam comportamentos em conflito em torno de uma mesa só. E ninguém aí se contradiz. Eis aí o Santo Graal da cultura de Oxum!

Voltando ao cais do porto, visão idílica de saveiros coloridos e dos muitos barcos e o movimento de viajantes, me perco em pensamentos. Ao som do búzio ouço o pescador anunciando a chegada do peixe fresquinho, ainda guardo esta grata lembrança. Mercadores, disso e daquilo, ciganos vagantes, judeus mascates, árabes comerciantes, donos de barraca de feira, e todos os mais que se juntavam ao alarido contente de trabalhadores da Companhia Valença Industrial. Ao apito do vapor de caldeiras fumegantes a fábrica de tecidos juntava-se todo o agito da cidade de Valença de anos idos. Fortuna sempre à vista. Casarões e sobrados foram assim construídos (hoje, infelizmente, vão sendo destruídos!). Ruas seriam calçadas. Grandiosos lampiões iluminavam a fachada do palacete do Comendador Madureira que refletia todo o seu esplendor nas águas turvas do Rio Una. Não tão diferente dos mercados orientais mediterrâneos, navegam por este pedaço de rio e transportam mercadorias, barganhas e artimanhas.

Valença, sobrado de cores e porque não dizer, é também baú cortejado. Casa louvada em cortejos de vibrante filarmônica, é casa antes habitada por meus ancestrais maternos. Para mim precioso livro da memória, páginas de todos os meus dias. Esse seu telhado ainda resiste em mim, íntegro no seu valor, pois que, estruturado em seus múltiplos suportes, Valença, essa casa acolhedora desafia intempéries.  Qual espinha dorsal desse tempo, apesar de muitas goteiras, resistem caibros e barrotes na estrutura de um telhado assentado pelo trabalho de muitas mãos suadas e que ainda a sustenta forte. - Valença, ao azul de quando. Louvores à cidade e a seu bravo povo.

*Publicado na edição impressa nº 599, do jornal Valença Agora.

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