Eduardo Pereira - matutando

Eduardo Pereira*

Historiador, jurista e psicanalista em formação.

 

Não pretendemos destruir mitos, pois como disse Albert Einstein, é mais fácil destruir um átomo do que destruir um mito. Portanto, toda sociedade possui seus mitos formados e estruturados durante o processo histórico, no caso específico, referimo-nos ao mito da meritocracia; o que vale dizer que consoante esse mito, as pessoas adquirem bens materiais, intelectuais, empregos funções, etc., de acordo com seus méritos, qualidades, habilidades e competências pessoais.

De fato, salvo raríssimas exceções, a forma de alcançar-se sucesso, posição social, riqueza, poder, etc., no Brasil, não se dá por méritos pessoais e sim por outros artifícios ou em alguns casos (não raros), até por subterfúgios. O certo é que, como mito, a meritocracia, está tão enraizada na consciência brasileira que, é impossível retirar, ao menos no momento.  Assim, os grupos privilegiados mantêm-se no poder, usufruindo das riquezas de forma que, o povo acha legítimo.         Cassiano da Mata, nascido na década de 1960, numa comunidade quilombola vizinha a um latifúndio pertencente a uma empresa norte-americana, com certeza pode ser classificado dentre essas raríssimas exceções, uma obra do Divino. Mesmo contrariando a todas as estatísticas socioeconômicas, Cassiano conseguiu concluir seu curso universitário, graduando-se em engenheiro civil, diga-se o único negro da universidade.

Portador de um currículo universitário invejável, mesmo assim, Cassiano da Mata, teve que arrumar um “pistolão”, para conseguir estagiar, pois como disse o Prof. Dr. Milton Santos: “no Brasil, até para ir ao médico, necessita-se ter um pistolão”. Mesmo depois de concluir o curso e inscrever-se no órgão de classe, Cassiano continuava a trabalhar numa pronta-entrega de confecções, pois seu currículo não era aceito em nenhuma empresa, sendo reprovado em todas as entrevistas. Restou-lhe como opção, o concurso público e Cassiano da Mata, depois de muitos anos de estudos e cursos preparatórios, finalmente foi aprovado, indo  trabalhar no governo federal na sua área de graduação.

Costumeiramente, nosso personagem, passa suas férias, na Capital pernambucana, num condomínio composto por várias torres, habitado na sua totalidade, por estudantes. Festas, baladas, passeios, são frequentes. Grupos de estudos inexistem. Para perplexidade e até revolta, Cassiano da Mata, nunca presenciou um estudante lendo, seja um livro da biblioteca da universidade, seja um jornal, uma revista, um texto, etc.

Nosso personagem, lembrou-se  de algumas pessoas conhecidas suas que, exercerem diversos cargos do mais alto prestígio social e se gabam de nunca terem lido um livro – Pasmem, mas é verdade, colegas do Cassiano que batem no peito com orgulho e afirmam: “Eu nunca li um livro”. Indaga-se, como isso foi possível? E, não se trata de fatos isolados.

No que se refere a aversão à leitura por parte dos brasileiros, recordo-me que dado professor, da rede universitária pública, ao reivindicar uma biblioteca para a universidade da qual era diretor, foi praticamente expulso da cidade. Paradoxalmente, a biblioteca foi instalada, porém, pode-se observar, pelas fichas que, nenhum livro fora lido. Todos os estudantes se graduaram e, estão muito bem colocados no mercado de trabalho, com certeza graças aos privilégios pessoais e de castas.

Retornando ao condomínio dos estudantes, enquanto não se vê sinais de leitura de qualquer gênero, até mesmo porque, não se observa nenhum estudante portando qualquer tipo de material para leitura, a academia (de ginástica) do condomínio está sempre abarrotada de estudantes, a desfilarem pelas áreas comuns do condomínio, vestidos sumariamente, com shorts de lycra a “desenharem” suas “vergonhas”; a quadra de futsal e o campo de futebol, de igual modo, sempre cheio de rapazes que imaginam-se astros do futebol.

Mergulhando na história deste país, encontraremos as raízes históricas dessa aversão à leitura; vejamos: enquanto a Universidade de São Domingos é criada no ano de 1538, sendo considerada historicamente a primeira universidade das Américas, seguida pelas de San Marcos, no Peru (1551), México (1553), o Brasil, somente em  1808, passou a contar com escolas superiores de forma isoladas e universidade propriamente dita, somente no século XX. É oportuno registrar-se que o jesuíta  Marçal Beliarte, no século XVI, chegou a fazer uma proposta direta ao rei de Portugal, para a criação de uma escola de ensino superior no Brasil, lamentavelmente, sua Majestade considerou a referida  proposta absurda, para ele,  uma universidade no meio do mato.

É bom lembrar que no Brasil,  por proibição régia, não se poderia  imprimir; entretanto, Antônio Isidoro da Fonseca, no Rio de Janeiro, ignorou tal proibição, e no ano de 1747, publicou o folheto “Relação da Entrada”, tendo como punição, sua tipografia confiscada, foi preso e obrigado a retornar para Portugal.

A preocupação do Cassiano da Mata deveria ser a de boa parte dos brasileiros, como estudantes que não leem, poderão no futuro serem bons profissionais? O mito da meritocracia não permite que as pessoas enxerguem esse vazio de conhecimento, essa douta ignorância que se tornou regra por aqui, desde tempos distantes, considerando-se que, dos estudantes formados pela Universidade de Coimbra, nos tempos coloniais, boa parte desses, nunca foram naquela cidade portuguesa, lembrando-se que, naquela época não existia educação à distância (EAD) e os que iam à cidade de Coimbra, passavam a maior parte do tempo nas tabernas e em casa das “mulheres-damas”, na mais completa esbórnia.

Evidencia-se que aqui não se faz uma generalização, o que de per si, já seria injusta, pois existe parte significativa dos estudantes que, de fato estudam e é dada à leitura, sendo  futuros bons profissionais.

Além do mais, não se deve silenciar a ausência de negros dentre os estudantes universitários. A esse respeito, convém dizer que, nas seis das dez carreiras mais concorridas da  Fuvest 2015, nenhum candidato negro foi aprovado no vestibular e se tornou calouro da Universidade de São Paulo (USP) naquele ano. O mesmo ocorre no referido condomínio, onde Cassiano, nunca presenciou um negro, não por incapacidade desse grupo étnico, mas devido ao racismo reinante que, transformou durante o processo histórico a universidade em espaço de privilégio destinado a um grupo social e étnico que se tornou hegemônico e manipula os espaços educacionais com a única finalidade da manutenção dos seus injustos privilégios.

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