Recordar Valença Agora 13 de janeiro de 2017 Colunistas, Matutando No ano de 1970, eu era um estudante nas séries iniciais na Escola Municipal Centro Operário situada na então Fazenda Velha, hoje Vila de Itajaí, Município de Ituberá. Naquela ocasião, o estudante terminava a Cartilha Alice e deveria recordar, acredito que, para melhor fixar o aprendizado. Em 1970, ninguém daquela localidade cursava o ginásio, pois era muito caro, portanto, além das condições financeiras do povo do lugar. No ano de 1973, dois estudantes de lá foram estudar no Ginásio Santo André, cujas mensalidades além de caras, não se poderia atrasar os pagamentos, sob pena de não poder entrar na sala de aula, além de outras medidas coercitivas. Em 1974, com sacrifício da minha família, fui estudar no referido ginásio. A partir de 1975, adotou-se uma sistemática por parte da Escola Municipal Centro Operário: os estudantes que obtivessem as melhores notas na 4ª série primária adquiririam o direito de repeti-la, ou seja, de recordar, não mais na escola acima citada e sim, no Grupo Escolar Marechal Castelo Branco localizado no centro da Cidade de Ituberá. De fato eu não sei qual a importância de recordar um livro como se dizia naquela época, porém lembro-me do meu professor de Educação Musical, no curso ginasial, que nos dizia: ”As pessoas decoram o estribilho de uma música por repetir mais essa parte da letra musical”. Passei a observar e logo concluir que o Mestre tinha certa razão. Acredito que somente nos recordamos dos fatos que consideramos importantes, daí por que se diz que a memória é seletiva. Fatos doloridos que nos causaram angústia, por exemplo, são recalcados pelo aparelho psíquico e mandados para o inconsciente do indivíduo, conforme ensinamentos de Freud. De fato para quem viveu os anos de 1970, e consegue recordar-se, deve saber que a situação do Brasil era extremamente caótica, isto sob o ponto de vista do ganho da população. Exemplificando, em Fazenda Velha quem tinha um jumento? Somente me recordo do Sr. Tiúba, com seu famoso “Gigante”, Sr. André Casquinha, dono de uma “tropa de muares” que transportava areia, tijolos e mercadorias; Sr. Antônio Severo, com seu jumento que, servia de transporte para Sr. “Limpinho”, um paralítico, vir para a Cidade “tirar esmola” na porta do Mercado Municipal. Por falar em esmola, existiam naquele período, uma infinidade de pessoas idosas ou portadoras de necessidades especiais, a tirarem esmolas e era comum ouvir-se a seguinte frase: “Uma esmola pelo amor de Deus”, e o esmoler estendia a mão com uma cuia de queijo, onde se colocava o dinheiro e este, retribuía com um “Deus lhe pague”. Motocicleta era chamada de lambreta e somente existiam duas na cidade, dois ou três fuscas, umas poucas picapes, pertencentes aos abastados fazendeiros, o famoso caminhão do Sr. Noé, acredito que fabricado na década de 1920, uma marinete e mais nada. Andávamos todos a pé, por falta de condições para pagar transporte. Por outro lado, convém lembrar que na década de 1970, o Salário Mínimo era correspondente a U$ 39,00. Naquela ocasião, a diária de um trabalhador rural, logo quando o salário era reajustado, dava para comprar um quilo de carne-do-sertão e em poucos meses, a carne subia e um trabalhador deveria trabalhar mais de um dia para poder adquirir um quilo de jabá, nos chamados armazéns de molhado. Nas férias escolares eu ia para o Maruim, município de Igrapiúna, onde minha família era proprietária de terras e pude observar minha mãe tirar comida da panela, antes de estar completamente cozida para dar a determinadas pessoas que estavam para desmaiarem de fome, ou como se diz: “Estavam para ter uma “ura”. No Maruim, por exemplo, todos nós morávamos em casa de “taipa”, boa parte coberta com palhas de marimbu, pois casa de telha, como se dizia, significava condições financeiras boas, minha família naquela ocasião já possuía casa coberta com telhas, fabricadas na olaria do Sr. Pedro Marciano, um dos maiores filósofos natos que eu conheço. Era comum, se dormir em “sote”, tarimbas, colchão de capim era símbolo de status. Lanterna, era artigo de luxo e, recordo-me que meu pai possuía uma da cor vermelha, com três pilhas, ou três baterias como dizíamos, a maioria ao andar à noite, usava os chamados “fachos”, uma espécie de tocha confeccionada com lascas de biriba, rádio, nem pensar. Os costumes do Maruim serão tema de um dos nossos textos. No final da década de 60 do século XX, meu pai que era um homem bastante generoso, adquiriu uma pequena posse rural denominada “Lagoa do Dendê” e doou para a família dos meus primos que moravam em nossa propriedade. Recordo-me, quando vi, meus primos e primas, passarem pelo “Campo de Zé Pereira”, com a tal mudança, esteiras de tabu nas cabeças, o jumento de nome “Guaraná” com o restantes das coisas que chamávamos de um “canguelê”. Minha tristeza foi tamanha, por em minha tenra idade, presenciar tanta pobreza, estava me separando dos meus primos, embora a Lagoa do Dendê, ainda ficasse no Maruim e nem tão distante assim da nossa propriedade, Manoel Lucindo, além de primo era meu irmão-se-leite, um amigo até os dias atuais que, acabou sendo vítima de imigração forçada para a Cidade de São Paulo, o que de fato mais torturava meu espírito infantil era a pobreza. No período descrito é bom observar que, vivíamos a ditadura civil/militar, tempos esses que, para quem não possui essas memórias, ainda quer que retorne pois certamente, o grupo social de quem deseja o retorno dos anos de chumbo, vivia naquela época das benesses custeadas pelo Estado, a exemplo da “Lei do Boi”, da Sudene, empregos sem concursos públicos, inclusive nos mais altos escalões, etc. Observamos hoje como a situação mudou, ao menos sob o ponto de vista do consumo, do acesso à educação, etc. Exemplificando, os primeiros celulares custavam uma fortuna, computadores, os famosos “Pentium” que meus amigos burgueses se gabavam: “Eu comprei um Pentium IV”. Faculdade, quem de Ituberá ia estudar em uma Faculdade? Receio que a população brasileira seja obrigada a recordar essa “cartilha”, para aprender a lição, iguais aos recordadores da famosa Cartilha Alice, ou dos pobres suburbanos, obrigados a recordarem o quarto ano primário, haja vista o lastimável quadro que se desenha com essas PECs, no caso particular com a PEC 441, lembrando que PEC é Proposta de Emenda Constitucional. Assim sendo, nesse caso, significa, a priori, o desmanche do Estado Social, contido na Constituição de 1988, um retrocesso, sob o ponto de vista dos pobres. *Publicado na edição impressa nº 596, do jornal Valença Agora. Deixe uma resposta Cancelar resposta Seu endereço de email não será publicado.ComentarNome* Email* Website