O Dia mais longo da história do Brasil Jornal Valença Agora 19 de julho de 2016 Colunistas, Matutando Eduardo Pereira Historiador, jurista e psicanalista em formação. Há certo consenso jurídico, até que se prove o contrario, que a Lei nº 3.353, de maio de 1888, que ficou conhecida como “Lei Áurea”, é a mais sucinta da história jurídica do país, contendo apenas um artigo: “Art. 1º É declarada extincta desde a data d’esta lei a escravidão no Brazil”, já que o segundo se configura em algo obrigatório em todas as leis: “Art. 2º Revogam-se as disposições em contrário”. E assim foi feita a abolição no Brasil, sem nenhuma proposta de reparação pelos quase quatro séculos de escravidão. Ao contrario, o que se viu foi um projeto de exclusão perpetrado pelo Estado e pelas elites nacionais para excluir e marginalizar a população negra. Antes mesmo do fim formal da escravidão já se programava medidas que buscavam embranquecer racial e culturalmente a sociedade brasileira. Houve quem postulasse e defendesse que no período de um século – de 1911 a 2011 – a população negra seria extinta da sociedade, assim pensava o então diretor do Museu Nacional, João Batista de Lacerda que apresentou e defendeu, em nome do governo Brasileiro, um projeto com tal finalidade, no I Congresso Mundial das Raças, ocorrido em Londres, no ano de 1911. Por tudo que vem sendo produzido pelo Estado e pelas elites nacionais contra a emancipação e acesso à cidadania pela população negra ao longo desses anos após a abolição é que afirmamos que o 14 de maio é o dia mais longo da nossa história. Citaremos dois exemplos que demonstram como o cotidiano da população negra no pós-abolição foi e continua a ser permeado por preconceito, discriminação, desrespeito, violência e exclusão. O primeiro é o caso de um ex-escravizado que é citado em um documento datado de 28 de novembro de 1889, exatos 1 ano 5 meses e 15 dias após a publicação da Lei Áurea, em Santarém, atual município de Ituberá; no documento, o delegado de polícia da então Santarém comunicava-se com o seu chefe na capital, alegando que na Vila de Santarém, havia muitos escravos livres, e pediu a sua “permissão para recrutar alguns libertos da lei de 13 de maio que viviam a provocar desordens, completamente na ociosidade, cometendo roubos, e insultando geralmente, sem o menor respeito à lei e à moralidade”. O delegado informava que esses indivíduos eram “aptos para o exército”, e consultava o seu superior se os poderia “recolher a fim de cohibir os escândalos por elles praticados, servindo de exemplo aos outros”. Na prática, o objetivo principal do recrutamento pela força policial baiana “era o constrangimento do liberto ao trabalho e sua transformação, atendendo às demandas dos fazendeiros, numa força de trabalho controlada, dependente e disciplinada”, conforme pontua a historiadora Iacy Maia Mata. O segundo exemplo que citamos é o caso envolvendo o precursor do samba carioca, João Machado Guedes (1887-1974), conhecido popularmente como João da Baiana, autor de sambas como Batuque na Cozinha, Cabide de Mulambo e Quando a Policia Vier. Era o “12º filho de Perciliana Maria Constança, a Tia Perciliana de Santo Amaro, uma das famosas baianas Mães de Santo (Ialorixás)”, ao lado de Tia Ciata a viverem nos morros cariocas do inicio do século XX. É atribuído a ele a inserção do pandeiro nas rodas de samba. João foi um dos muitos sambistas presos nas primeiras décadas da republica sob a acusação de promover rodas de samba, isso mesmo, o hoje ícone da identidade nacional, era proibido, bem como outras práticas socioculturais da cultura negra. Por mais que pareça absurdo hoje, o simples ato de tocar pandeiro ou portar um, era o suficiente, para “dar cana” a quem ousasse tocar ou andar pelas ruas da capital da republica portando um: Segundo o próprio João da Baiana: “Pandeiro era proibido. O samba era proibido. Então [por volta de 1900], a polícia perseguia a gente. E eu tocava pandeiro na [Festa da] Penha. A polícia me tomava o pandeiro. Pois não fui preso por pandeiro? Diversas vezes. Me tomavam o pandeiro e me prendiam” Assim como o samba, também a capoeira e o candomblé eram proibidos. Com esses exemplos buscamos demonstrar como os corpos negros e seu universo ritualístico, cultural e simbólico foram e ainda são perseguidos no pós-abolição. O que se buscava, antes de qualquer outra coisa era extirpar do tecido social e da identidade nacional o corpo físico e a cultura da população negra. E tudo isso era uma política de Estado, tanto assim que o primeiro Código Penal da república, promulgado em 1890, estabelecia o crime de vadiagem, proibia a prática da capoeira, o curandeirismo e a feitiçaria, entenda-se esses dois últimos como expressões preconceituosas que se direcionavam à criminalização dos cultos afro-brasileiros. O 14 de maio, como o dia mais longo da história do Brasil e que está em curso ainda hoje, permanecerá carregando os seus simbolismos, isto porque enquanto a sociedade brasileira, e em especial as elites inférteis, como as classificava o saudoso Darcy Ribeiro, não aceitarem que a escravidão e, por conseguinte, o pseudo “direito” de se apropriarem dos corpos negros e explorar a sua força de trabalho à exaustão foi extinto em 13 de maio de 1888, e o Estado passar a implementar políticas sérias e estruturantes para promover a reparação pelos quase quatro séculos de trabalhos forçados a que a população negra foi desumanamente submetida, enquanto isso não acontecer o dia 14 de maio de 1888 permanecerá inacabado. * Texto produzido com a gentil colaboração do Professor Egnaldo Rocha, Doutorando em História Social (PUC-SP) Deixe uma resposta Cancelar resposta Seu endereço de email não será publicado.ComentarNome* Email* Website