A volta Jornal Valença Agora 21 de julho de 2016 Araken Vaz Galvão, Colunistas No meu longínquo tempo de criança, talvez fosse melhor dizer que na minha adolescência – pois me encontrava naquela fase em que os rapazinhos, sem saberem qual é o seu lugar na sociedade, têm atitudes contraditórias, riem por qualquer coisa, principalmente um dos outros companheiros, sob quaisquer pretextos. Lembro-me que pertencia a um grupo que gostava muito de cinema, nada de muita importância, faroeste, em sua maioria. E como este tipo de filmes, os de caráter mais modesto, costumavam vir a primeira versão, depois vinha um em que no título, pelo menos em português, aparecia, por exemplo, o nome do herói, digamos que “O Zorro”. Depois, se me lembro bem, vinha, sucessivamente, “A Volta do Zorro”, seguido de “O Filho do Zorro” e assim sucessivamente. Este simplório método (o qual, hoje seria chamado de marketing) fez surgir o título fictício de um filme com o qual brincávamos entre nós, que se chamava “A Volta do Homem que não foi”, a que todos achávamos uma graça incrível, típica das incertezas da idade. Agora, nesta fase de minha vida, infelizmente próxima do ocaso, tenho-me lembrado muito daquela expressão da juventude, e sinto impulsos de glosar uma frase, a qual, reconheço, de muito mau gosto, inclusive sem ter mesmo a hilaridade ingênua daquela outra, a que seria: “A volta do Câncer que não foi”, em uma desesperada (até certo ponto) tentativa de rir da fatalidade que abateu sobre mim, quando descobri que o tumor que me aparecera na próstata dera metástase nos ossos. Constato, porém, que não só me falta à hilaridade “sem graça” da juventude, como a frase não era tão-somente de mau gosto, era também mal construída, parecendo-me hoje horrível. Não serve nem para disfarçar meu desespero e, em vez de um sorriso amarelo, provoca-me lágrimas, além de uma terrível sensação de ridículo. Mas, não posso evitar em falar da “Volta do câncer que não foi extirpado”. E dizer que toda esta volta, esta escrita tortuosa, deverá servir como introdução ao meu próximo livro, cuja estrutura fragmentária é um vício no meu ato de escrever, e não uma forma de disfarçar o conteúdo da escrita. Tinha lançado recentemente o livro “...das Prisões e do Exílio – Crônicas”, tinha concluído “Relatos Esparsos[1]”, uma espécie de autobiografia fragmentada, e tendo este livro ficado muito volumoso[2] e, necessitando desesperadamente manter-me ocupado, resolvi continuar com este relato, sempre sem prender-meà continuidade e à cronologia (até certo ponto) dos fatos passados, atendo-me somente a forma com que eles surgiam-me na mente. Influenciou muito também o parecer que o amigo Paulo Cunha deu sobre o meu volumoso relato “O Sargento na História do Brasil”, um projeto grandioso e, por isso mesmo, muito fragmentado – elaborado por instância do companheiro, já falecido, Ly Adorno de Carvalho –, como é do meu estilo, no qual é misturada, de forma atabalhoada, a História recente do país, com minha vivência pessoal em várias épocas de minha vida política. Dessa forma, nada mais oportuno do que, meditando sobre a volta do câncer (que, como a ditadura[3] desejou, teima em querer me matar), agora me atacando os ossos, do que dar alguns depoimentos sobre o mundo que vivi e do Exército em que servi entre 1955 até o golpe de 1964, que destruiu nossa incipiente experiência de democracia. A primeira que, realmente, ensaiávamos viver desde 1500. Pode até ser irônico falar nisso neste momento em que parte da população, inclusive jovens da classe média, pedem a volta daquele passado ignóbil. Ia completar 19 anos, estávamos no ano de 1955, quando tive que ingressar no Serviço Militar. Fi-lo no Regimento Escola de Artilharia, em Deodoro – conhecido pela sigla militar de REsA[4]), bairro do subúrbio da Central, do Rio de Janeiro. Era um nordestino desterrado, pois tinha deixado minhas raízes no sertão de Jequié – cidade que, até hoje, faz questão de ignorar o papel que exerci na História do Brasil, pois jamais demonstrou qualquer tipo de reconhecimento em relação a mim. Sei que isso é uma atitude daquilo que se poderia chamar de “elite” da cidade, porém é lamentável que nos meios intelectuais – diga-se desta fora – não surja discordâncias, ainda que eu possua alguns bons (poucos) amigos naquela cidade. Tenho também lá alguns parentes mais próximos, além daqueles poucos amigos (valiosos amigos), mais vejo que é uma cidade de pessoas, em sua maioria, reacionárias, pedantes e incultas, principalmente asda classe política. A qual, em várias oportunidades, demonstrou a maior indiferença em relação a mim e ao meu papel na História da Pátria, em defesa da liberdade. No entanto, se Jequié figurar algum dia e de alguma forma digna na História do Brasil será por jovens como eu e outros que sacrificaram os melhores anos de suas vidas, participando em movimentos de rebelião, como os que participaram de Araguaia – muitos foram mortos – e em outros grupos rebeldes em vários estados da federação. Aliás, no exílio por onde andei, havia até brincadeira sobre a presença de baianos de Jequié desgarrados pelo mundo afora devido a suas participações na luta libertária da nossa juventude, da qual eu também tive o privilégio de participar. Deste modo, pode-se dizer que naquela época os jovens daquela cidade sertaneja estiveram presentes na luta pela liberdade. No entanto, agora, não devo amargurar-me com a indiferença da elite política de Jequié, amo aquela cidade – a qual tem sido tema quase constante de minha obra literária –, como amo muito os amigos, alguns da Academia de Letras, como também os parentes que nasceram e moram na chamada Meca do Sudoeste baiano. O tema agora é o câncer generalizado nos meus ossos, o qual o único que os médicos podem fazer é retardar o seu desenvolvimento. Por outro lado, ainda que fale abertamente sobre ele, e ainda possa até sugerir um tom amargurado (afinal ninguém que irá morrer em um futuro próximo vai regozijar-se), na verdade trata-se de franquia pura e simples. O que desejo mesmo é cantar uma velha canção de carnaval, a qual, dirigindo-se a uma mulher, diz: Anda Luzia, pega o pandeiro e cai no carnaval. Eu, que não brinco mais carnaval (tampouco o carnaval de hoje é muito diferente daqueles que brinquei na juventude), só me resta esperar maio chegar (quando devo completar 80 anos) e gritar: Anda Galvão, pega o pandeiro e cai no carnaval. Ou – quem sabe? – cantar apenas Disparada... Valença, BA, 15 de março de 2016 © Araken Vaz Galvão [1] Poderá ser também: Vida Fragmentada. [2] Embora não tenha sido ainda editado, está com 304 páginas, em papel A4, fonte 12 e espalho 1, 5; significando que o livro ficará com umas 400 páginas, coisa que não gosto, pois aprendi que livro muito pesado, salvo os de História e similares, é uma falácia de escritor inglês ou estadunidense. Ademais, por uma série de inconvenientes, cansa de modo bastante, a mão de quem lê principalmente a dos velhos, como é meu caso. [3] Na verdade a ditadura é que foi um tumor maligno que atacou o cerne da sociedade brasileira, o qual se vê agora, ainda deixou muitas células cancerosas. [4] O Exército possui uma forma padrão de abreviatura. Deste modo, Es, sem uso de ponto, é Escola. Ex, sempre sem ponto, é Exército. Sei que houve algumas modificações desde o meu tempo. Mas fica aqui o registro. Deixe uma resposta Cancelar resposta Seu endereço de email não será publicado.ComentarNome* Email* Website