Durrell e o Quarteto de Alexandria IV Jornal Valença Agora 29 de julho de 2016 Araken Vaz Galvão, Colunistas E passou-se o ano, com um inverno de ventos inclementes e geadas mais pungentes que o sofrimento. Não estávamos prontos para o verão magnífico que se seguiu à primavera. Um verão saído de alguma latitude havia muito esquecida, sonhada pela primeira vez no Éden, redescoberta por milagre em meio aos pensamentos adormecidos da humanidade. Abateu-se sobre nós como um navio quebra-gelo imaginário, lançando âncora em frente a cidade, velas brancas inquietas como as asas de uma gaivota. Ah! Estou buscando metáforas capazes de transmitir um pouco da felicidade avassaladora tão raramente concedida aos amantes; mas as palavras, inventadas para combater o desespero, são cruas demais para refletir as propriedades de algo tão sereno, tão íntegro. Palavras não passam de espelhos de nossas insatisfações; contém o embrião das tristezas do mundo todo. Talvez seja mais simples repetir em voz baixa alguns versos de um poema grego, escrito à sombra de uma vela, numa árida escarpa de Bizâncio. Algo como... “Pão preto, água límpida, céu azul Rosto sereno, único, taful. Mente reclinada sobre mente Olhos fechados sobre olhos. Cílios trêmulos, corpos nus.” Não ficam bons em tradução; e a menos que os escutemos em grego, escorrendo docemente, palavra a palavra, de uma boca tornada íntima pelo carinho de beijos intermináveis, permanecerão eternamente fotografias maçantes de uma realidade que foge ao escopo do poeta. É triste não poder capturar a plumagem brilhante daquele verão — pois na velhice pouco teremos além dessas lembranças para sustentar nossa felicidade claudicante. Será que a memória guardaria aqueles dias incomparáveis? Guardaria a densa sombra violeta das velas brancas sob a obscu escuridão das figueiras? As afamadas estradas no deserto por onde marcham as caravanas de especiarias e as dunas ascendem ao céu para engolfar em seu o ruído das asas das gaivotas? Ou o frio açoite das águas nos frontões arruina de ilhas esquecidas? A bruma noturna caindo sobre portos desertos, encobriu os dedos eretos das antigas balizas árabes? Não restam dúvidas que tudo isso seguirá existindo em algum lugar. Ainda não me assombravam a memória. Os dias sucediam-se no calendário do desejo, cada noite virando-se lentamente durar sono para reverter a escuridão e inundar-nos novamente da magnífica luz do sol. Tudo conspirava para aquela perfeição que tanto desejávamos. (Pág. 179-180). Não é difícil, escrevendo com este distanciamento, perceber que tudo já havia acontecido, já fora determinado de certa maneira. Aquilo não passava, por assim dizer, de sua “execução”– seu estágio de manifestação. O cenário, porém, já fora traçado em outro lugar, os atores haviam sido escolhidos, as falas ensaiadas nos mínimos detalhes na mente daquele autor invisível – que talvez seja a própria cidade: a Alexandria da condição humana. Carregamos dentro de nós as s dos eventos futuros. Estão implícitos em nós, e brotam de acordo com suas própias leis. É algo difícil de acreditar, eu sei, quando pensamos na perfeição daque e no que veio em seguida. (Pag. 180). Muito resultou da descoberta da ilha. A ilha! Como passara despercebida por tanto tempo? Para nós, literalmente, não havia um recanto desconhecido em toda aquela costa, uma praia em que não tivéssemos pisado, uma região propícia onde não tivéssemos lançado âncora. Mas ali estava aquela ilha, encarando-nos de frente “Se deseja esconder alguma coisa”, reza o provérbio árabe, “esconde-a no centro do sol”. Não ficava escondida; localizava-se a oeste do pequeno santuário de Sidi El Agami – a alva escarpa coroada por uma construção branca rodeada de escassas palmeiras. Não era mais do que um pedaço de granito, erguido do fundo do mar por um terremoto ou outra convulsão submarina no passado distante. Quando a maré estava alta, a ilha ficava coberta; mas ainda assim é curioso que até hoje não apareça nos mapas marítimos, pois oferece um risco considerável a embarcações de médio porte. (Pag. 180). O dia de sua morte foi como qualquer outro dia de inverno (na fazenda), diferente apenas num único detalhe minúsculo e intrigante, cuja significância mão ficou clara de imediato: os criados haviam sumido, deixando-o sozinho no solar. Passou a noite toda em sonhos inquietos, passados no ambiente luxuriante de sua fantasia, denso como uma floresta tropical; acordava vez ou outra e era consolado pelo voo suave das garças na escuridão. O inverno estava no ápice e as grandes migrações haviam começado. Os amplos espaços vítreos do lago começavam a encher-se de visitantes alados, como se fosse uma espécie de terminal. Era possível escutar o voo durante toda a noite – o zumbido espesso das asas dos patos-reais ou o crónc crónc dos gansos voando algo em frete a lua. Entre os juncos e caniços, escutavam-se os grasnidos de chalreios dos marrecos. O velho solar, com suas paredes bolorentas, onde escorpiões e pulgas hibernavam nas frestas empoeiradas entre os tijolos, pareciam-lhe muito vazio e desolado após a partida de Leila. Marchava pelos cômodos com um ar desafiador, fazendo o máximo de barulho possível com as botas, gritando com os cães e estalando o chicote no pátio” (Pág. 253). Com esta pequena exposição creio ter dado uma visão geral da maravilha que é a obra de Durrell e o Quarteto de Alexandria. Deixe uma resposta Cancelar resposta Seu endereço de email não será publicado.ComentarNome* Email* Website