Janelas Abertas - Paulo Vitor

Desde 2018, quando a Festa de Nossa Senhora do Amparo foi oficialmente reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial do município de Valença, por meio da Lei Municipal Nº 2.524 de 09 de abril de 2018, o termo "patrimônio" ganhou maior visibilidade na cidade. Esse reconhecimento abrange manifestações como a lavagem, as novenas, a missa dos operários e a procissão, consolidando a festa como o primeiro bem cultural imaterial tombado no município. Mas, afinal, o que significa ser patrimônio? Essa designação não se limita apenas ao reconhecimento de bens históricos; envolve a valorização de práticas culturais que representam a identidade coletiva de uma comunidade. O tombamento de um patrimônio imaterial, como no caso da Festa do Amparo, preserva a memória viva de tradições que moldam o pertencimento e a continuidade histórica de Valença.

O tombamento da Festa de Nossa Senhora do Amparo apenas reafirma o que os valencianos já reconhecem há muito tempo: trata-se de um Patrimônio Vivo, que integra fé, devoção popular e cultura identitária em Valença. À medida que o mês de outubro se aproxima, torna-se comum entre os moradores discutir os preparativos e expectativas em torno da festa. Há até quem fale de um "clima da Festa do Amparo", algo único e perceptível apenas por quem vive em Valença. O hino da padroeira expressa em uma de suas estrofes que a festa é uma "emoção", e ao revisitar as memórias dos valencianos, é possível identificar as raízes dessa forte conexão emocional.

É indiscutível que a Festa do Amparo se configura como uma festa popular, apesar de alguns tentarem negar ou minimizar essa dimensão por razões ainda pouco compreendidas. A Festa do Amparo integra um calendário de grandes celebrações populares religiosas na Bahia, ao lado da Lavagem do Bonfim, da Festa de Santa Bárbara em Salvador, da Festa da Purificação de Santo Amaro e da Festa de São Bartolomeu em Maragogipe, entre outras. Mas, por que a Festa do Amparo conquistou essa identidade popular?

Desde 2023, quando ingressei no Mestrado em História pelo Programa de Pós-Graduação em História do Atlântico e da Diáspora Africana da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), em Ilhéus-BA, dedico-me à pesquisa da história da Festa de Nossa Senhora do Amparo de Valença. Minha dissertação, prevista para conclusão em 2025, visa preencher uma lacuna significativa na historiografia sobre essa festividade, que até o momento conta apenas com um artigo científico da historiadora Cristijose Araújo, publicado em 1999. Sendo um trabalho de pesquisa em andamento, compartilho neste texto algumas reflexões preliminares sobre a festa.

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A Festa do Amparo é considerada popular porque Nossa Senhora do Amparo foi adotada pelas classes populares da região como uma santa poderosa, em razão dos milagres atribuídos a ela. Diferentemente do que indicam algumas pesquisas sobre o tema, documentos históricos revelam que a devoção a Nossa Senhora do Amparo em Valença foi estabelecida no século XVII, totalizando, assim, cerca de 350 anos de prática na região. Essa informação contrasta com a ideia disseminada de que a devoção teria se iniciado em 1757, juntamente com a construção da igreja, conforme sugerido por algumas obras bibliográficas sobre a História de Valença.

Como era comum na época, a devoção a Nossa Senhora do Amparo foi estabelecida na região atualmente conhecida como Valença, no contexto da colonização dessas terras. Assim, o povoamento em torno da igreja, próximo ao Rio Una, adotou a santa como padroeira local. Tratando-se de uma devoção de origem europeia, a população, composta por indígenas, negros e descendentes de portugueses, passou a atribuir significados à presença de Nossa Senhora do Amparo em sua comunidade. Entre as narrativas que permeiam a memória coletiva dos valencianos, destaca-se a história de que a santa teria aparecido no local onde hoje se ergue a igreja, após um homem montado a cavalo, prestes a cair em uma ribanceira, clamar por sua proteção.

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Atualmente, alguns habitantes de Valença ainda consideram o Sagrado Coração de Jesus como o padroeiro da cidade. Essa percepção remonta a 1801, quando foi construída a Igreja Matriz dedicada a esse santo, com a intenção de que ele assumisse o título de padroeiro da Vila de Nova Valença, que havia sido estabelecida em 1799. No entanto, surge a questão: por que instituir um novo padroeiro em uma localidade que já cultuava Nossa Senhora do Amparo há mais de um século? Uma possível explicação está relacionada a um projeto de reforma que a Igreja Católica implementou no século XIX, visando combater as práticas de devoção popular e promover uma espiritualidade mais centrada nos sacramentos.

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É interessante notar que o conceito de padroeiro, ou "arago", tradicionalmente está vinculado a um santo ou a algum título da Virgem Maria, que exerce a função de intercessora junto a Deus. Portanto, a designação do Sagrado Coração de Jesus como padroeiro parece incoerente, uma vez que, de acordo com a doutrina da Santíssima Trindade, Cristo é reconhecido como Deus em si mesmo.

Ao longo dos anos, enquanto a Festa do Sagrado Coração de Jesus era celebrada de acordo com a liturgia e atraía as elites da cidade—refletindo a localização da Igreja Matriz no centro do poder econômico de Valença—, a Festa de Nossa Senhora do Amparo continuou a ser uma manifestação de fé entre as classes subalternas da localidade. Essa devoção popular foi fortemente influenciada pelos modos de festejar das culturas indígenas e afro-brasileiras.

Com o surto de industrialização em Valença, iniciado em 1840 com a instalação de duas fábricas têxteis, uma delas nomeada Nossa Senhora do Amparo — atualmente conhecida como Companhia Valença Industrial (CVI) — a proclamação de Nossa Senhora do Amparo como padroeira dos operários contribuiu significativamente para a popularidade da santa na cidade. Em meio às precárias condições de trabalho da época, Nossa Senhora do Amparo tornou-se um verdadeiro refúgio para os trabalhadores, aumentando a quantidade de milagres atribuídos a ela ao longo dos anos.

Provavelmente, esse contexto foi crucial para o crescimento da Festa do Amparo, que se tornou a maior festividade da cidade, refletindo a popularidade da santa. A força das práticas das classes populares restabeleceu a Nossa Senhora do Amparo como Padroeira de Valença — um título que, de fato, nunca deixou de pertencer a ela. A confirmação da importância de Nossa Senhora do Amparo para a cidade se evidencia no fato de que o dia 8 de novembro, dedicado a ela, é feriado municipal. Em contraste, o Sagrado Coração de Jesus não possui mais um feriado próprio, e sua festividade foi transferida ao longo dos anos do mês de junho para o terceiro domingo de julho.

É possível afirmar que, desde a segunda metade do século XX, a Festa do Amparo é uma manifestação de emoção. Essa emoção já atraiu, e ainda atrai, embora em números menores em comparação àquela época, centenas de turistas para a festividade. Desde a década de 1970, a Festa do Amparo possui o formato que conhecemos atualmente: a Lavagem da Igreja, realizada pelos adeptos das religiões de matrizes africanas no último domingo de outubro, as novenas entre os dias 30 de outubro e 7 de novembro, e as celebrações do grande dia, 8 de novembro. Este dia é marcado pela alvorada festiva ao amanhecer, o ofício de Nossa Senhora às 6 horas, a tradicional Missa dos Operários às 7 horas, a Missa Solene às 10 horas e, por fim, a tão aguardada procissão às 15 horas. Considero este momento o mais belo da festa, ousando chamá-lo de “Círio do Baixo Sul da Bahia”.

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Ao longo dos anos, a colina sagrada, mais querida pelos valencianos, tornou-se um espaço de memória representado pela Festa do Amparo, consolidando-se como o maior núcleo identitário da cidade. Nela se entrelaçam as recordações das barracas, dos parques de diversões, do Candomblé Elétrico, do sistema de radiofusão conhecido como “A Voz do Amparo”, dos sambas de roda, das batucadas, das serestas e das levadas. A imagem da igreja iluminada pode ser contemplada a partir de diversos bairros da cidade ou pela ladeira adornada com bandeirolas e gambiarras de lâmpadas incandescentes, que cobrem toda a rua.

As memórias evocam os sabores da maçã-do-amor, da pipoca, do algodão-doce, da cana-de-rolê, e o aroma inconfundível de batata frita e pururuca, além dos balões suspensos e das bolas de vinil, que imortalizam momentos em fotografias tiradas por meio de binóculos. Recordam também a tão esperada procissão, com bandeirolas enfeitadas nas ruas, confetes e toalhas brancas nas sacadas, acompanhadas de aplausos, lágrimas e olhares que traduzem o agradecimento por mais uma Festa do Amparo vivida.

São inúmeras memórias que não se restringem às limitações deste texto. No entanto, uma certeza permanece no coração de cada valenciano, independentemente de onde esteja: a Festa do Amparo é a Festa do Povo Valenciano. Essa festividade é uma marca identitária que nunca poderá se apagar. Cada festa é única e se manifesta de acordo com seu contexto histórico. A Festa do Amparo é um patrimônio vivo; sua emoção pode adquirir novas nuances, mas jamais perderá sua essência. É dessa emoção que se origina o cerne da identidade do povo de Valença.

A Festa do Amparo deve ser respeitada em todas as suas dimensões, sejam elas religiosas ou culturais. Contudo, somente quando ambas as dimensões se entrelaçam é que a Festa do Amparo realmente ganha sentido, reafirmando que, para os valencianos, ela representa amor, fé, festa e devoção.

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