Neblina Jornal Valença Agora 15 de julho de 2016 Colunistas, Janelas Abertas A neblina que tirava o colorido do meio e limpava todo o ambiente. Busca pelo estado de espírito. Respirando fundo, do alto, ar puro, habitat natural. O monte, a sintonia, a natureza; completo. Antiga vida, vida nova. Steven era um dos advogados mais requisitados de Porto Alegre. Exercia a carreira brilhantemente. Procurava maiores satisfações. Um sentimento de falta, um vazio em incompreensão. Foi visitar uma amiga que vivia em um chalé afastado da cidade, e em meio a muitas árvores. Tratava-se da sua melhor amiga. Conheceram-se na universidade. Laura fazia arquitetura, e mais tarde se tornaria também uma excelente profissional. Largou tudo e foi viver uma vida mais tranquila. Mantiveram contato desde então, ele sempre a visitava. Laura estava na varanda tomando chimarrão e lendo. Ele se aproximou e sentou ao lado dela. Ela fechou o livro e perguntou: – E então, como você está? – Um pouco desgastado. Estou satisfeito com o meu trabalho, objetivos conquistados, mas há algum tempo sinto que preciso mudar algo. – Não é a primeira vez que você me diz isso. Lembra que uma vez lhe disse que talvez você chegasse ao ponto em que cheguei? – Sim, lembro bem. – Pois então, acho que você chegou. Olha isso... Senti esse ar puro, o canto dos pássaros... Isso é lindo. – Inquestionavelmente e definitivamente, lindo. – O que você procura, Steven? – Eu não sei bem o que procuro. Talvez algo que valha realmente a pena. O que vale a pena?! – Poucas coisas valem a pena. Quase tudo são mentiras, e quase todos são hipócritas. – Eu tenho quarenta anos e ainda não tenho filhos. No fundo eu acho que isso se deve ao fato do medo que tenho de ter um filho vivendo nesse mundo. As coisas só pioram. Às vezes eu tenho a impressão que, ou vamos implodir ou explodir a qualquer momento. – Eu acho que isso já aconteceu, apenas vivemos com o que sobrou de todo esse processo regressivo – disse Laura. Steven tomou um banho e vestiu uma calça jeans e uma camisa preta de manga comprida bem quente que tinha deixado da ultima vez que estivera ali. Passou os olhos na modesta coleção de vinil de Laura e colocou Billie Holiday. Enquanto isso, Laura entrou e colocou uma dose de conhaque para ele. Sentaram no sofá e ficaram em silêncio ouvindo aquela fascinante e inigualável voz. De súbito, Laura perguntou o porquê dele ainda não ter ido morar com ela. Ele, surpreso com a pergunta, respondeu que ela nunca havia feito o convite. Ela disse que era solteira e ele também, que já se conheciam há bastante tempo, e que já haviam ficado juntos. Ele disse que não poderia negar que era algo tentador, mas que era algo para pensar a respeito. Ela disse que iria aguardar o resultado dos seus pensamentos. Um mês depois Steven e Laura já estavam morando juntos. Laura tinha uma pequena plantação de uva, laranja, morango, e hortas. Havia outras pessoas que trabalhavam com ela. Pessoas que estavam sempre dispostas a ajudar umas às outras. Existia a agradável sensação de se estar sozinho em meio ao verde da natureza. Laura tomava café na varanda pela manhã, enquanto Steven, no monte, respirava um ar puro, com a neblina que tirava o colorido do meio e que limpava todo o ambiente. Mais uma manhã, e mais uma vez buscava o seu estado de espírito e a sensação de se sentir completo. Naquela manhã Laura pensou em algo, em ir ao encontro de Steven no monte. Ela sabia como ele gostava de estar só naquele momento, embora ele nunca tivesse dito isso para ela. Ela já havia feito aquela caminhada algumas vezes, já tinha estado naquele monte e sabia como era importante estar só consigo mesmo. Ela foi quem o levou ao monte pela primeira vez, e observou o brilho dos seus olhos ao estar ali. Subia o monte tranquilamente. Enquanto isso, Steven já havia alcançado o seu estado de espírito e descia o monte. Quando Laura se apoiou em uma arvore, avistou Steven também se apoiando em uma arvore e descendo agora ao seu encontro. Foram surpreendidos por tiros e se abaixaram rapidamente, quando veio na direção de Steven um garoto ferido com a mão no ombro. O garoto tinha mais ou menos uns treze anos, e pedindo para Steven fazer silêncio, se abaixou ao lado dele. Steven levou o garoto até Laura, que estava abaixada e tremendo, e juntos foram para casa. Colocaram o garoto no sofá, e percebendo que ele estava ferido, Steven pediu para Laura pegar suprimentos médicos. Enquanto ele tirava a bala do ombro do garoto, Laura estava na janela olhando pela falha da cortina, para ver se alguém se aproximava. O garoto passou três dias com eles. Enfim, depois do silêncio, o garoto resolveu contar tudo o que havia acontecido. Pela manhã, Steven desceu as escadas e percebeu que o garoto tinha ido embora, deixando um bilhete de agradecimento. Laura preparou duas xícaras de chá, e algumas ervas. Colocou o som de Joni Mitchell, e sentou ao lado de Steven. Ele beijou sua testa e a envolveu em seus braços. – Você acha que ele vai ficar bem? – perguntou Laura. – Acho que sim. O importante é que fizemos o que tínhamos que fazer. – Crianças... Os pais tem sua parcela de culpa. Deixar a arma ao alcance dos filhos. – Foi por pouco. Eu já tinha pensado em ir à casa dos pais dele e ter uma conversa, mas ele sumiu. Na verdade nunca saberemos se o que ele contou foi realmente o que aconteceu. Foi tudo tão rápido, tão estranho. Quando ele disse que o amigo disparou a arma dos pais acidentalmente, eu fiquei, de certa forma, um pouco mais aliviado. Poderia ter acontecido algo pior quando ele apareceu ferido. – Você tem razão. Mas vamos mudar o rumo da onda, ou melhor, da conversa. Após terem assistido alguns episódios de “Lost”, continuaram: – Eu sempre admirei a sua liberdade, essa determinação de fugir das regras – disse Steven. – Eu não sei como a banda toca, nem nunca vou saber. Porque eu não sigo a banda, eu apenas a vejo passar. Mas digamos que eu também tive meus momentos de insegurança e incertezas. Já pensei até em suicídio, acredite. Mas constatei que os suicidas não conheceram o amor, pois, se conhecessem, mesmo após a perda de um amor, desejariam viver pela possibilidade de amar novamente – acrescentou Laura. – Concordo, em parte. Acho que existem exceções. Dentro de uma determinada concepção, você é uma tentadora provocação – disse Steven. – E o que posso falar de você?! Pura essência. Somos capazes de chegar a qualquer lugar, de realizar qualquer sonho, de alcançar qualquer objetivo. Desde que saibamos que temos tal força, e que encontremos essa força dentro de nós – disse Laura. – Você nunca pensa que poderia ter sido alguém com uma vida ainda melhor que essa? – Sim. Mas é que tudo requer um pouco de morte, e eu nunca estive disposta a morrer nem mesmo esse pouco. – Se requeria um pouco de morte, acho que já não valeria tanto a pena, logo não seria uma vida melhor. – Hoje em dia é difícil encontrar algo e alguém de verdade – disse Laura. – O que faz as pessoas serem de verdade, é a quantidade de verdade que elas são – disse Steven olhando-a fixamente. – É fácil julgar quando você vê aquele que não vê, mas difícil sentir. Talvez o excesso em tudo, isso é desgastante. – A excessiva excitação da emoção ofusca a razão – continuou Steven. – Filosofia! Ok, vamos dispensá-la. Precisamos de outra coisa – disse Laura um pouco cínica e ousada. – O que? Neblina, conto de Tyson Pereira. Deixe uma resposta Cancelar resposta Seu endereço de email não será publicado.ComentarNome* Email* Website