O RECONHECIMENTO DE PESSOAS: Descumprimento da norma legal, preconceitos e erros judiciais Jornal Valença Agora 23 de dezembro de 2024 Colunistas, Janelas Abertas RESUMO: No presente artigo, é buscado um breve apanhado de ideias e críticas pertinentes acerca do procedimento previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, qual seja, o reconhecimento de pessoas e coisas. Será trabalhado o reiterado descumprimento do rito exposto no diploma legal, bem como nuances ligadas ao preconceito, racismo estrutural e, especialmente, consequências dos erros judiciais advindos de um equivocado reconhecimento durante a persecutio criminis. Palavras-chave: procedimento; racismo estrutural; erro judicial; responsabilidade do Estado. INTRODUÇÃO O procedimento previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal apresenta-se de grande valia para formalização de elementos de informação durante a investigação policial e, subsequentemente, para formação do convencimento do órgão do Ministério Público e, ao final, do julgador, quando da prolação de sua sentença. Necessário é, contudo, trabalhar com parcimônia o instituto legal, em especial por todas as especificidades e nuances que permeiam o caso em concreto e podem levar, não raras vezes, a erros judiciais que mudam, por completo, a vida de uma pessoa. Descumprimento do rito processual, falsas memórias, influências externas, preconceitos e racismo estrutural, tudo isto dá azo a reconhecimentos errôneos de acusados, causando o encarceramento equivocado e, muitas das vezes, o fim de vidas inocentes. O instituto processual probatório previsto nos arts. 226 a 228, do CPP vem passando por radical modificação do entendimento jurisprudencial sobre o sentido e alcance da norma processual, tanto no STJ quanto no STF. O que há pouco tempo era considerado uma “mera recomendação legal”, passou a ser tratado, como defendido pela maior parte da doutrina, como uma norma de observância estrita e cogente, para validade da prova dela decorrente e, via de consequência, para validade da condenação que nela se baseia. O PROCEDIMENTO DE RECONHECIMENTO DE PESSOAS E COISAS E SUAS FALHAS A investigação criminal deve ser eficiente na tarefa de identificar autores de crimes e fornecer elementos para o início da ação penal, sem, todavia, violar os direitos dos suspeitos. Os procedimentos policiais adotados atualmente em inquéritos policiais são simplistas, sobretudo em investigações relativas à criminalidade de rua, geralmente direcionadas a obter confissões dos suspeitos e depoimentos de testemunhas. Ordinariamente, dados os parcos recursos humanos e tecnológicos encontrados nas Unidades de Polícia Judiciária Brasil a fora, grande é uso do instituto sob análise. O reconhecimento de pessoas, especialmente em processos judiciais, é um dos métodos utilizados para identificar indivíduos em investigações, como em casos de crimes. Esse procedimento pode ocorrer de diversas formas, como reconhecimento fotográfico, reconhecimento pessoal (em que a vítima ou testemunha aponta o suspeito em uma fila de pessoas) e reconhecimento por vídeos ou imagens. Por certo, necessário ter em mente que, embora não seja uma prova de caráter absoluto, visto que necessário ser corroborado por outros elementos probatórios e de informação, o instituto do reconhecimento de pessoas recebe, especialmente quando é falado de crimes cuja consumação deu-se à distância de testemunhas ou onde há parca quantidade de outros elementos informativos, um peso considerável e importância ímpar. Conforme dispõe o artigo 226 do Código de Processo Penal, há um rito legal a ser seguido, o que, em maioria dos casos, é dispensado, em sua inteireza, no dia a dia da persecução penal. Ora, a própria falha no seguir do rito, per si, já seria uma mácula à produção do elemento de informação e/ou prova. Ocorre que, além disto, há diversas particularidades que permeiam a produção equivocada desta prova, gerando erros execráveis. O mais importante é ter por certo que máculas que tornam nula a prova, ferirão de morte a própria validade da acusação e/ou sentença condenatória. A futura confirmação da autoria não excepciona a regra do artigo 226, do CPP, que figura como pressuposto de legalidade de todo e qualquer reconhecimento de pessoas. STJ e STF têm reconhecido que o referido ditame legal não se trata de uma orientação, mas sim de norma cogente. Algumas das principais causas de erros incluem: Memória falha ou distorcida: Também chamada de falsa memória, necessário entender que a memória humana não é infalível, e as testemunhas podem se lembrar de detalhes incorretos ou distorcidos. Este fenômeno pode ocorrer por algumas razões, tais como sugestão externa, confusão de informações, o estresse, o tempo decorrido entre o crime e o reconhecimento, e a presença de preconceitos. Tais podem afetar a precisão do reconhecimento. As falsas memórias são um tema que interessa à psicologia e neurociência, áreas que estudam como a mente humana processa e organiza uma informação. Influência externa: Em alguns casos, a pressão de autoridades ou o contexto do próprio reconhecimento (como a sugestão implícita do investigador) pode influenciar a testemunha, levando-a a identificar alguém que não é o culpado. Nesta particularidade, possível citar uma falha, porém comum prática investigativa, o denominado “show up”. O show up fotográfico, termo cunhado no direito norte americano, é um método de reconhecimento de suspeitos que consiste em mostrar uma única foto do acusado à vítima. No entanto, este método é considerado problemático, pois a vítima pode identificar o suspeito mesmo que ele seja inocente. Alguns estudos sobre a epistemologia jurídica e a psicologia do testemunho alertam que o show up é contraindicado. Para reduzir o risco de um reconhecimento equivocado, o investigador deve adotar precauções adicionais, como esconder a tatuagem do suspeito ou apresentá-lo junto com outras pessoas semelhantes Falta de um procedimento adequado: O reconhecimento deve seguir protocolos rigorosos para garantir que seja justo e confiável. A falha em aplicar esses procedimentos, como a inclusão de suspeitos que se parecem muito entre si ou o uso de sessões de reconhecimento em momentos inadequados, pode prejudicar a validade da prova. Fatores emocionais e sociais: A confiança de uma testemunha pode ser influenciada por fatores emocionais ou sociais, como a pressão do grupo, preconceitos raciais ou medo de errar. Isso pode resultar em identificações errôneas. O ERRO JUDICIAL E RESPONSABILIDADE ESTATAL O erro judicial causado pelo reconhecimento equivocado de pessoas tem implicações graves, incluindo a condenação de inocentes e a libertação de culpados. Por isso, muitos sistemas judiciais têm tentado reformar esse processo, utilizando métodos mais rigorosos e testados cientificamente, como o uso de tecnologia (por exemplo, reconhecimento facial), além de oferecer treinamento adequado aos envolvidos. Em alguns países, há um movimento crescente para revisar condenações baseadas em falhas no reconhecimento de pessoas, especialmente após a descoberta de que muitas pessoas foram erroneamente condenadas com base em testemunhos falhos. No ordenamento pátrio brasileiro, a responsabilidade do Estado é objetiva, o qual deve reparar os danos causados por seus agentes no exercício da função pública, mesmo que não haja culpa e, por certo, erros judiciais geram a responsabilização estatal. Para tanto, o erro deve ser grave e flagrantemente contrário à lei, à jurisprudência ou à realidade fática, de modo que não é considerado erro judiciário um mero equívoco na interpretação da lei, mesmo que a decisão judicial seja devidamente fundamentada. No Brasil, não é trabalhado o chamado crime de hermenêutica. O PRECONCEITO, RACISMO ESTRUTUAL, VISÃO LOMBROSIANA E OS ERROS JUDICIAIS ADVINDOS Decerto, o erro judicial e o racismo estão frequentemente interligados, especialmente em sistemas de justiça onde preconceitos implícitos ou explícitos podem influenciar decisões e processos. O "erro judicial" se refere a falhas no julgamento de um caso, seja por equívocos de fato, interpretações erradas da lei ou falhas procedimentais. Quando o racismo está presente, esses erros podem ser amplificados, afetando de maneira desproporcional indivíduos de grupos racialmente marginalizados, como negros e indígenas. No Brasil, por exemplo, o racismo estrutural impacta o funcionamento do sistema de justiça. Estudos e dados mostram que pessoas negras são mais propensas a serem presas, condenadas e a sofrerem sentenças mais severas em comparação com pessoas brancas, muitas vezes devido a preconceitos que influenciam a atuação de policiais, advogados, juízes e promotores. O erro judicial, nesse contexto, pode ser agravado pela visão estereotipada de que certos grupos são mais propensos a cometer crimes, o que resulta em julgamentos injustos ou em excessos na aplicação da lei. Além disso, o racismo também se manifesta na forma como as vítimas de erros judiciais são tratadas. Quando um indivíduo negro é injustamente condenado, por exemplo, o processo de reparação de danos pode ser mais demorado ou mais difícil, devido à falta de confiança da sociedade e das próprias vítimas no sistema de justiça. Mesmo que involuntariamente, a visão lombrosiana é presente de forma enraizada em como a persecução penal direciona com firmeza seus grilhões. César Lombroso foi um criminologista italiano do século XIX, amplamente conhecido por suas teorias pseudocientíficas sobre a "criminalidade" e os supostos traços biológicos que indicariam uma predisposição para o crime. Foi idealista de doutrina que pregava que os criminosos poderiam ser identificados por características físicas específicas, como traços faciais ou deformidades, um conceito que ficou conhecido como "teoria do criminoso nato". Essa teoria baseava-se em uma visão determinista e biologicamente fatalista da criminalidade, sugerindo que certos indivíduos, por sua constituição biológica, seriam mais propensos ao comportamento criminoso. Não há como negar que o racismo estava intimamente ligado às ideias de Lombroso. O estudioso associava certos grupos étnicos a comportamentos criminosos, e suas teorias eram profundamente influenciadas por preconceitos raciais e sociais da época. Lombroso fez afirmações infundadas e prejudiciais sobre populações não brancas, como negros, ciganos e indígenas, afirmando que essas pessoas, em sua visão distorcida, seriam mais propensas ao crime devido a uma suposta "degeneração" biológica e características físicas "primitivas". Essa visão racista estava embutida nas suas conclusões, e ele utilizou estereótipos para justificar a discriminação e a marginalização de certos grupos sociais. Embora tenham sido amplamente desacreditadas com o tempo, pois não tinham base científica sólida, as teorias lombrosianas tiveram um impacto negativo, principalmente na criminalização de populações racializadas, e ainda são usadas para exemplificar como a pseudociência pode ser utilizada para reforçar e justificar o racismo institucionalizado e as desigualdades sociais. O legado de Lombroso é um exemplo claro de como o racismo pode ser incorporado de forma disfarçada em teorias "científicas", com graves consequências para as políticas públicas e para a vida de muitas pessoas. No Brasil, o maior expoente da visão lombrosiana foi o maranhense Raimundo Nina Rodrigues, fundador da Antropologia Criminal brasileira e trabalhou um verdadeiro racismo “científico”. Este estudioso chegou a publicar, em 1894, um ensaio defendendo a criação de códigos penais diferentes para as distintas raças. Sua obra, Mestiçagem, desgenerência e crime, publicada em 1899, defendia a tese de que negros e mestiços tinham maior tendência criminosa. Tais ideais, corroborados pelo brutal sistema escravista que perdurou por séculos e o posterior abolição segregadora e excludente, fundaram a própria visão preconceituosa que permeia o sistema penal pátrio. Não restam dúvidas de que os erros judiciários causados por falhas no reconhecimento de pessoas decorrem não apenas da inobservância do procedimento, mas também e sobretudo de estereótipos socioeconômicos e, até mesmo, raciais. Decorrem, ainda, do desprezo de narrativas de pessoas específicas, que pertencem a setores subintegrados da sociedade e que ocupam “o banco dos réus” em crimes, de sua maioria, patrimoniais. A combinação de erro judicial e racismo revela uma grave falha no sistema de justiça, que precisa ser constantemente desafiada e reformada para garantir que todos, independentemente da cor ou origem, tenham acesso a um julgamento justo e imparcial. CONSIDERAÇÕES FINAIS O descumprimento do rito processual para reconhecimento de pessoas supostamente autoras de crime, aliado a fatores externo, em especial preconceitos e o racismo desmontam, por completo, a legalidade e justiça presentes na persecução penal, gerando hediondos erros judiciais, encarcerando inocentes ao mesmo tempo em que mantem livre os verdadeiros culpados. O importante instituto probatório previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, utilizado de maneira errônea, é capaz de produzir atrocidades. O operador do direito, especialmente o agente diretamente ligado a quaisquer das fases da persecutio criminis deve zelar pela lisura do procedimento, a fim de contribuir para produção de provas lícitas e legítimas, aptas a formar o escorreito convencimento do órgão judicial que prolatará a sentença. Toda comunidade e a própria democracia se beneficiam de um sistema penal idôneo e imparcial, que zela pela distribuição assertiva e equitativa da credibilidade. São características que legitimam o poder punitivo e estimulam o cumprimento voluntário das normas penais. Afinal, é cediço que a persecução penal não possui recursos humanos, materiais e financeiros infinitos. Assim, quando sobrecarrega populações específicas, naturalmente precisa desviar a atenção em relação a outros grupos, assegurando, por via oblíqua, a impunidade, tão prejudicial à credibilidade da justiça penal e à efetivação das normas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BADARÓ, Gustavo Henrique. Prova Penal e Sistemas de Controle. 2. ed. São Paulo: RT, 2020. BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei n.º 3.689, de 3 de outubro de 1941. GOMES, Luiz Flávio; MAZZILLI, Renato. Prova no Processo Penal: Teoria e Prática. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. RIBAS Ortigosa Leite, S., & Amaral Bahia, C. J. (2023). O erro judiciário e a injustiça epistêmica no reconhecimento de pessoas. Revista Brasileira De Direito Processual Penal. STRECKER, João. O Reconhecimento de Pessoas e o Risco de Erro Judiciário: Uma Abordagem Crítica. Revista Eletrônica de Direito Penal, n. 12, p. 12-35, 2020. *Sobre o autor Delegado de Polícia da PC/BA. Formado pela Universidade Dom Bosco em São Luís/MA. Exerceu advocacia privada por 12 (doze) anos. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estácio de Sá. Pós graduado em Ciências Jurídicas aplicadas às Atividades do Ministério Público - Lato Sensu pelo Grancursosonline. Deixe uma resposta Cancelar resposta Seu endereço de email não será publicado.ComentarNome* Email* Website