araken-galvao

Viver não dói – encontrei, em meu velho arquivo, na parte de duvidoso material recebido via internet, um texto atribuído(1) a Carlos Drummond de Andrade, com este título – o que me levou a pensar: Só dói quando se vive. Ou seja, quando, ao viver, se ama e, ao amar-se, não se é correspondido. Afinal, como diz a canção do meu tempo: “Amar é viver/ é um doce prazer embriagado, invulgar”. Ora, se amar é viver, não se conseguindo dar amor a quem se ama(2), sofre-se. Fora dessa situação, viver realmente não dói. O único problema é que, se o que a canção diz é verdade, a falta de amor muitas vezes causa uma dor dos diabos...

anuncie_agoraPensando sobre isso foi, então, que me lembrei da moça da farmácia – aquela que fica na esquina da rua visconde do Monte Santo e da rua da Fonte do Boi, no Rio Vermelho, em Salvador, na Bahia, minha amada terra. Mas quem fica na dita esquina, claro, é a farmácia. Que nenhum leitor desavisado vá pensar que seja a moça em questão citada quem ali fica, balançando a bolsa – no exercício daquilo que o lugar-comum classifica como o mais antigo dos ofícios –, já que ela fica apenas dentro do também citado estabelecimento comercial, trabalhando como balconista, e não na referida esquina, ofertando ilusórios instantes de amor, se é que ao se comercializar o sexo a ele seja possível acrescentar algo de sentimento. Assim sendo, ela, além do trabalho atendendo no balcão, tem todo o ar de quem é casada, por estar aparentando gravidez, ainda que isso não signifique nada além de já ter copulado, uma vez que, em nossos dias, para se praticar tal atividade, não mais se necessita dos sagrados laços do matrimônio, que os tempos são outros bem diferentes daqueles existentes quando fui jovem. Mas, dirão meus eventuais leitores, o que a moça – que deve ser uma senhora – tem a ver com a vida doer ou não?

É que fui comprar um medicamento e a pessoa que me atendeu atrapalhou-se. Ela, para ajudar à colega de trabalho, disse gentilmente:

— É para o coração – completando, para ser bem clara – É um remédio para o coração, não é mesmo, senhor? – Esta última frase evidentemente dirigida a mim.

Naquele dia acidentalmente, estava de bom humor. Tinha saído da reunião semanal do Conselho Estadual de Cultura, passara na farmácia, com intenção de ir depois ao supermercado comprar algo para merendar no hotel. E junto com as compras da merenda, tencionava levar também um litro de uísque. Beberia umas duas doses e, no outro dia, traria a sobra para minha casa, onde, no fim de semana, amenizaria o peso da vida que já não dói tanto, porque, com a idade, o que mais me atormenta são as articulações, principalmente as do joelho. Porém, tudo isso são divagações. Estava na farmácia e de bom humor, então lhe respondi:

— O remédio para o coração, senhorita, é o amor – não tinha notado ainda sua incipiente gravidez, por isso não a chamei de senhora – Os remédios são para corrigir os males causados, no coração, pelo amor.

Ela, e outros dos seus colegas de trabalho, olharam-me com evidente surpresa. “Esse velho é maluco” – devem ter pensando. Ao que fui obrigado a esclarecer, do alto dos meus 74 anos, à guisa de amortecer o impacto de minhas palavras:

— No meu tempo era assim. Não sei nos dias atuais...

Fez-se um longo segundo de perplexidade. Um outro balconista, esse do sexo masculino, quebrou-o – o silêncio, é claro –, dizendo, um tanto sem propósito:

— Já estão até querendo instituir o dia do sexo, não é mesmo?

— Não estou bem seguro se sexo tem algo a ver com amor... – Acrescentei – No entanto, sempre tendo por base o meu tempo, quando todo dia era dia de sexo, fico a matutar o quão desagradável seria a instituição desse dia...

Sabia que estava falando um português pouco popular, e que grande parte do ar de perplexidade, que via estampada no semblante dos atendentes daquela farmácia, devia-se ao meu linguajar. Porém, minha intenção – filha do meu inesperado bom humor – era justamente usar dele, o linguajar, para caracterizar o meu tempo. Por isso acrescentei;

— Imagino sempre que vão colocar uma câmara, dessas de segurança, para fiscalizar a observância dos preceitos legais.

Continuava usando termos “jurássicos”, como “fiscalizar a observância dos preceitos legais”, em vez de monitorar a aplicação da lei, continuei.

— Já pensaram a pessoa estar em sua casa e, de repente, bate à porta um fiscal. “O senhor não tem praticado sexo ultimamente, senhor”. E o cidadão, meio sem jeito, justifica-se: “Bem... Quero dizer... O tempo anda curto. Muito trabalho... Quando se volta a casa tem-se o computador, a internet, os bate-papos virtuais... Os amigos ligam... o celular... Um joguinho, sabe como é...” E o fiscal: “Compreendo perfeitamente, Mas é preciso observar o que prescreve a lei. Dê-se por advertido”.

E o cidadão, muito a contragosto, olha para a mulher, que se encontra assistindo a novela, e diz: “É, meu amor, melhor a gente obedecer, eles podem proibir os jogos on-laine, cortar o nosso crédito do celular e até bloquearem as novelas. Vamos ter que fazer o sacrifício... Você já tomou banho?”

Mas aí, já me encontrava no táxi, a caminho do hotel, na Pituba, com planos de, antes, passar na loja de conveniências, vulgo delicatessen, para comprar a bebida que os escoceses legaram ao mundo para que os homens suportem a dor da vida...

 

A. Vaz Galvão

 

 

Valença, BA, 3 de julho de 2010

(1) Quando digo “atribuído”, é por duas razões: tê-lo recebido pela internet – meio que não me merece muita confiança – e por estar com preguiça de ir conferir em suas Obras Completas...

(2) Agora já estou a citar outro poeta, Thiago de Melo: “A maior dor sem foi/ e será sempre/ não se dar amor a quem se ama...”

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