Durrell e O Quarteto de Alexandria – II Jornal Valença Agora 27 de julho de 2016 Araken Vaz Galvão, Colunistas Continuação do que foi publicado no número anterior (aqui)... Em artigo anterior condenei em alguns autores o proposito contumaz de tentar a nos obrigar a ler os seus livros sempre tendo ao alcance das mãos, para consulta, tratados de filosofia e manuais sobre crítica literária, ou alguns daqueles artigos que nos guiem pelos labirintos de metalinguagem e pelos intricados mistérios dos monólogos interiores, além do completo conhecimento de psicanálises e ciências humanas correlatas. Depois cheguei a citar os casos emblemáticos de alguns dos nossos mais brilhantes escritores, dando como exemplo os casos de Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa; tendo citado antes os paradigmas da própria Bíblia, de Homero e de Cervantes, sabendo que poderia citar muitos outros, que, não fazendo uso destes ardis, escreveram livros inesquecíveis. Isto feito aventei a hipótese de que muitos dos autores, alguns que se pode considerar “herméticos”, afirmando que eles podiam se deleitar (e sonhar que nos deleita) como sua erudição acadêmica ou com os seus conhecimentos sobre os intricados conflitos que povoam a sua mente humana, e que eles julgam que podem povoar também a mente de toda a humanidade, ou de boa parte dela. Adverti, ainda, que me prevenia de maiores aproximação de suas obras. Dando como possível que poderia muito bem que o meu distanciamento deles (e de suas obras enigmáticas) podia decorrer da possível penúria da minha situação financeira daqueles tempos aziagos de exílio, sempre a me proibir de adquirir livros. Agora, depois de já enviado o artigo para o nosso Valença Agora, comecei a imaginar outra causa passível de terem lavado a alguns autores a escrever livros eruditos, porém muito chatos ou de leitura maçante, ainda que repletos de conceitos de altos conhecimentos e refinadas teorias. Dito isto, vou fazer uma paráfrase de algo que sempre diz uma amiga, alertando, de forma intrínseca, que literatura não se faz com teorias literárias, mas com sensibilidade (sentimentos) e metáforas. Com isto suponho e suspeito que alguns autores, mesmo sendo profundo conhecedores de tudo que já se escreveu sobre os livros mais belos já escritos, por tê-los dissecados seus mistérios (indispensável a toda obra de arte), não sabem contar uma história, objetivo final de toda narrativa. Feita esta ressalva, posso voltar a Durrell outra vez. E já que estou a cada momento falando de metáforas, vale apenas transcrever alguns fragmentos de um dos seus magníficos livros. Refiro-me, em particular, os que compõem o quarteto de Alexandria, no caso o volume II, Balthazar. “De início buscamos preencher o vazio de nossa individualidade com o amor, e por um breve instante desfrutamos uma ilusão de plenitude. Mas apenas isto, uma ilusão de plenitude. Esta estranha criatura, que julgávamos capaz de unir-nos ao corpo do mundo, ao fim termina por separar-nos dele completamente. O amor une para em seguida dividir. Se assim não fosse, como poderíamos crescer?” (Pág. 183). “[...] nascemos para amar a quem nos magoa.” (Pág. 185). “[...] com sua capacidade de ler nas entrelinhas – onde reside a verdadeira literatura!” (Pág. 186). Mas, com apenas estas citações não demonstrarei completamente, quiçá não dê uma pequena amostra da beleza contida em seus textos. Já informei que comprei os volumes que compõem “O Quarteto de Alexandria” recentemente, e só agora os estou lendo, acabo de chegar a final do III tomo, do qual retirei esta magnífica passagem, a qual reparto com vocês, já que a beleza, como o amor, deve-se dividir: “O dia de sua morte foi como qualquer outro dia de inverno (na fazenda), diferente apenas num único detalhe minúsculo e intrigante, cuja significância mão ficou clara de imediato: os criados haviam sumido, deixando-o sozinho no solar. Passou a noite toda em sonhos inquietos, passados no ambiente luxuriante de sua fantasia, denso como uma floresta tropical; acordava vez ou outra e era consolado pelo voo suave das garças na escuridão. O inverno estava no ápice e as grandes migrações haviam começado. Os amplos espaços vítreos do lago começavam a encher-se de visitantes alados, como se fosse uma espécie de terminal. Era possível escutar o voo durante toda a noite – o zumbido espesso das asas dos patos-reais ou o crónccrónc metálico dos gansos voando algo em frente à lua. Entre os juncos e caniços, escutavam-se os grasnidos de chalreios dos marrecos. O velho solar, com suas paredes bolorentas, onde escorpiões e pulgas hibernavam nas frestas empoeiradas entre os tijolos, pareciam-lhe muito vazio e desolado após a partida de Leila. Manchava pelos cômodos com um ar desafiador, fazendo o máximo de barulho possível com as botas, gritando com os cães e estalando o chicote no pátio” (Pág. 253). E continua: “Após o mês interior de silêncio, ouviu enfim a voz do irmão ao telefone. Naruz passava o dia inteiro desbravando a floresta de seus batimentos cardíacos, cuidado das terras com uma concentração furiosa, galopando ao longo das margens lentas do rio, acompanhado por seu reflexo: sempre trazia consigo seu chicote, enrolado na garupa. Sentia-se terrivelmente envelhecido – e ao mesmo tempo tão novo diante do mundo quanto um feto ainda preso ao cordão umbilical. Aquelas terra, suas terras, agora marrons e húmidas como um velho odre encharcado de chuva, tinham poder sobre ele. Era tudo o que lhe restava – cuidar das árvores feridas pela geada, a areia envenenada pelo sal do deserto, das águas repletas de peixes e gansos; dias inteiramente silenciosos à exceção dos suspiros e gemidos das rodas hidráulicas (...) carregadas pelo vento até os rincões mais distantes para novamente polinizar a história com a lembrança contagiosa do deus-soldado; ou o ruído da sucção dos búfalos negros enfiando as patas na terra mole dos canais. Então, à noite, o som assombroso dos patos decolando na escuridão, emitindo gritos ansiosos ou satisfeitos – uma linguagem de viajantes. Espessa neblina, nuvens baixas através das quais auroras e crepúsculos irrompiam com esplendor sem igual, cada um o fim do mundo, uma agonia de ametista e nácar” (Pág. 254). Se tiver tempo e paciência, transcreveria mais alguns fragmentos. Valença, Ba, 17 de outubro de 2014 © Araken Vaz Galvão Deixe uma resposta Cancelar resposta Seu endereço de email não será publicado.ComentarNome* Email* Website