carlos-magno

Como se fosse um clarão. Uma lembrança elétrica. Um close. É um fato. Tenho percebido, minha atenta leitora, meu leitor vigilante, tenho percebido sim. Vem-me uma lembrança de algo trivial, como o pássaro que passou um dia entre minha casa e a casa do vizinho. Nítido como se estivesse acontecendo no momento presente e é algo que já aconteceu há tempos. Talvez anos. Rasgos inesperados na fenda da memória.  É uma onda que trouxe uma alga e uma concha com sua preciosa faiança. Um trecho de uma estrada. A camada mais avermelhada do barranco colorido do Patipe ou a rachadura da escadaria da igreja. A floreira da minha vizinha que faz presépios.

Relances.  A beiradinha da casquinha do sorvete da sorveteria Pinguim. Uma parede esburacada em uma casa do Orobó. A folha da bananeira, amarela, pendurada na touceira em um quintal em Amargosa. O banco da pracinha de Várzea, em Baianópolis. O brilho no Una. São flashes como os que me vêm da lama quando a maré baixava em São Roque. As torres dos guindastes. A tampa da garrafa que vi no ferry. Uma tampa sobre um dos bancos. Coisas sem a mínima importância e que vêm, assim, de um brilho, num átimo.

O perfume do cabelo da namorada que um dia veio com ele amarrado em um coque no alto da cabeça. O esmalte vermelho e uma das unhas com uma mini flor desenhada. O brinco de argola na orelha. A bolsa pequena e lá dentro o espelhinho que eu vi, de relance. Minha mão correndo no braço que arrepiava. A namorada. A travessia para o Morro. O Morro. A cicatriz do Morro. Aquela madeira gasta no terminal dos ferrys, onde os barcos se apoiam para atracarem. A pedra irregular no meio das outras pedras irregulares do calçamento do Pelourinho. E a pedra em Arouca, em Portugal. Uma pedra parindo uma casca de pedra em forma de ostra. E a pedra polida que deu forma à escultura no Louvre. Mas vem-me o giz da escola de Quebra Machado. Peguei um giz para escrever algo para as crianças. Na hora, troquei aquele giz por outro. Minha memória me resgata o que rejeitei. Tantos resquícios  de lembranças.

Sinto como se minha memória estivesse buscando desesperadamente fragmentos instantâneos na tentativa de criar uma história que tenha ficado sem ser contada.

*Publicado na edição impressa nº 597, do jornal Valença Agora.

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