Por Paulo Vitor Souza da Luz | Professor, Historiador e responsável pela curadoria do projeto ‘Memorial Amparo’.

Desde a fatídica madrugada de 19 de novembro de 2023, quando um incêndio criminoso destruiu o Altar do Calvário, datado de 1865, na Igreja Matriz Sagrado Coração de Jesus, construída a partir de 1801, a cidade de Valença, localizada no Baixo Sul da Bahia, continua a sentir os impactos desse trágico acontecimento durante esta Semana Santa de 2024.

Na ocasião do incêndio criminoso, de razões ainda não explicadas, duas imagens sacras do século XIX estavam no altar, as quais certamente foram incendiadas juntamente com o altar, ou, roubadas e o incêndio serviu como distração para o roubo. Tratava-se de uma imagem de Nossa Senhora das Dores em estilo roca, considerada por muitos uma das raras do Brasil em possuir o corpo todo, diferente das comuns imagens de vestir da época, as quais possuíam só o busto; e um Cristo Crucificado de braços articulados. Ambas as imagens aproximavam-se de um tamanho natural.

Anualmente, a imagem de Nossa Senhora das Dores era levada em procissão pelas ruas da cidade de Valença apenas duas vezes ao ano, ambas durante o período religioso da Semana Santa. Fora dessas ocasiões, o culto dedicado a Nossa Senhora das Dores só acontecia em seu dia votivo, em 15 de setembro, com uma missa festiva na Igreja Matriz, porém sem a realização de procissão. Quanto à imagem do Cristo Crucificado, esta só era conduzida em procissão pelas ruas de Valença uma vez por ano.

Segundo o calendário cristão-católico, a Semana Santa tem início no Domingo de Ramos, que marca a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, e segue com eventos significativos da vida de Jesus, incluindo a Encontro do Cristo com sua mãe Maria, a Última Ceia na Quinta-feira Santa, a Crucificação na Sexta-feira da Paixão, o Sábado de Aleluia e o Domingo de Páscoa.

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Foto: Paulo Vitor Souza da Luz

Em Valença, a Quarta-Feira Santa é dedicada à tradicional Procissão do Encontro. Neste dia, a imagem de Nossa Senhora das Dores, acompanhada pela imagem de Nosso Senhor dos Passos, também em estilo rococó, proveniente da Igreja de Nossa Senhora do Amparo, datada do século XVII, saiam em procissão pelas ruas da cidade. Cada imagem partia de um ponto diferente da cidade e se encontravam em um local designado como o ponto de encontro, marcando o ápice da celebração. Tanto os locais de partida das imagens quanto o ponto de encontro variavam a cada ano, conforme os interesses da Paróquia Sagrado Coração de Jesus.

Na Sexta-Feira da Paixão, as imagens do Altar lateral do Calvário ganhavam destaque na Igreja Matriz Sagrado Coração de Jesus, enquanto as demais imagens de santos da igreja eram cobertas, seguindo a tradição. O centro das atenções era a representação do Jesus Crucificado, ladeado pela figura de Nossa Senhora das Dores à sua direita. Ambas as imagens eram dispostas no Altar-mor da igreja.

Às 15h, após a Leitura da Paixão, conforme a liturgia Católica, acontecia o momento da descida de Jesus da cruz. Vale ressaltar que, no Brasil, Valença era uma das raras cidades que realizavam essa celebração com uma imagem sacra de roca e braços articulados, do século XIX. Num ato público e emocionante, a imagem do Senhor Morto, nome dado à imagem de Cristo neste dia, era retirada da cruz, com a remoção dos pregos das mãos, até que o desprendesse da cruz. Os homens responsáveis pela descida do Cristo da cruz carregavam a imagem e a colocavam em um esquife já ornamentado com lírios e angélicas. Após a colocação do Cristo, algumas mulheres ficavam encarregadas de arrumar o corpo do Cristo, cobrindo-o com flores e panos de renda. Simultaneamente, a imagem de Nossa Senhora das Dores também era retirada do altar e conduzida até seu andor.

Após esses atos, as imagens de Nossa Senhora das Dores e do Senhor Morto, protegido por um pálio, percorriam as ruas do centro da cidade, retornando ao cair da noite e encerrando as venerações. Em seguida, as imagens eram recolhidas para seu altar original, o Altar do Calvário.

Agora, diante da perda das imagens de Nossa Senhora das Dores e do Cristo Crucificado, como será a Semana Santa na cidade de Valença a partir deste ano de 2024? Ainda que as imagens sacras sejam substituídas por outras para as celebrações, a Semana Santa em Valença não será mais a mesma.

Além de serem elementos essenciais nas práticas de culto religioso, as imagens de Nossa Senhora das Dores e do Cristo Crucificado também constituíam um valioso patrimônio cultural para a cidade de Valença. As imagens não apenas representavam símbolos religiosos, mas o uso delas representavam um elemento identitário da cidade. Elas estão na memória afetiva dos devotos e apreciadores conquistando um lugar insubstituível.

A ausência dessas imagens ainda resultou na perda de outro patrimônio histórico, que era a descida do Cristo da Cruz durante a Sexta-Feira da Paixão na cidade. A celebração era mais do que apenas um evento religioso; era uma manifestação cultural e histórica que conectava as pessoas com sua fé e com a história da cidade. A perda dessa tradição pode ser sentida não apenas pelos praticantes religiosos, mas por todos aqueles que valorizavam a riqueza cultural e histórica de Valença.

A partir deste ano, 2024, Valença iniciará uma nova experiência durante a Semana Santa, que se distingue das celebrações dos anos anteriores devido à perda de algumas tradições pela falta das imagens perdidas. No entanto, isso marca o início de uma reconfiguração das celebrações na cidade, visando manter viva a importância da Semana Santa do calendário religioso do município.

Além disso, continuemos vigilantes em relação aos outros patrimônios da cidade, empenhados em preservá-los e valorizá-los, com destaque para a Igreja Matriz Sagrado Coração de Jesus, que permanece interditada desde setembro de 2019, aguardando o início das obras de restauração pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC).

 

 

 

 

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