Especiaria vem sendo prejudicada com o aumento incontrolável da mortalidade das árvores

Único produtor de cravo-da-índia no Brasil, o Baixo Sul da Bahia está dando um tiro no pé. Assim como aconteceu com o ciclo da borracha, que enriqueceu Manaus, com o ciclo do cacau, que praticamente construiu Ilhéus e Itabuna, o que poderia ser o carro-chefe do agronegócio baiano atual não vingou. Com 90% da produção exportada, o dinheiro que entra na pequena região, com mais ou menos dez municípios, é cotado em dólares. Estamos falando do cravo-da-índia, uma especiaria que veio da Indonésia e se adaptou única e exclusivamente ao clima e solo de Valença e região. A produção sempre foi pequena, se comparada à produção mundial de 250 mil toneladas por ano. Mas chegou a colher, há 10 anos, mais de 13 mil toneladas, segundo contam alguns exportadores. Transformada em dólares e com o valor atual do produto, a Bahia ficaria US$ 65 milhões mais rica em apenas um ano e, mais uma vez, numa área exclusiva de poucos municípios.

Pois bem, a última supersafra chegou a meras 4,1 mil toneladas, isto na colheita de novembro de 2019 a janeiro de 2020, segundo dados do Ministério da Economia (Comex), em Brasília. Ainda deu um bom dinheiro aos agricultores pequenos, médios e grandes, que embolsaram e injetaram na economia local algo em torno de US$ 26 milhões, ainda de acordo com o órgão oficial. No ano seguinte, o trágico ano da pandemia do coronavírus, esse número caiu para 1,5 toneladas. Os dados oficiais ainda não foram divulgados, mas com as chuvas do início deste verão (dezembro, janeiro e fevereiro), não se espera mais que isso em 2021. “Isto não é normal, estamos perdendo dinheiro, e dinheiro estrangeiro”, alerta o gestor da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), Antônio Jorge Menezes, que dá apoio também aos produtores de cravo-da-índia e demais especiarias.

O motivo é sempre o mesmo para a decadência de um produto que nem atingiu seu auge. Falta de incentivo dos governos, falta de apoio à agricultura familiar, falta de instrução no manejo, invasão de fungos e pragas e, por incrível que pareça, ganância e insegurança.

Nada melhor do que ganhar um dinheiro fácil. Foi assim que a vassoura de bruxa se espalhou pelo cacau, produto que veio em grande quantidade da Amazônia e plantada em fazendas baianas a perder de vista. Junto veio a praga, que já existia no Norte do país, mas não causava tantos problemas pelo distanciamento das árvores. Em Ilhéus e Itabuna, as plantações foram feitas aproveitando-se ao máximo o solo. A consequência a história nos contou. A vassoura de bruxa tornou-se incontrolável. Quem era rico em um dia, tornou-se falido no seguinte.

Os fungos e doenças sempre estiveram presentes em qualquer tipo de lavoura brasileira. O clima favorece a planta, mas favorece também seus predadores. É o que está acontecendo com o cravo-da-índia, com o plantio de muda muito próximo uma da outra, além de colheitas através de processo químico, chamado de borrifação de Ethrel. Se não houver uma aplicação correta, em doses indicadas por especialistas, e com mudas adubadas anualmente, o que se espera é a morte lenta e prematura de uma árvore que poderia durar 60 anos.

Segundo o diretor da Cooperativa dos Agricultores Familiares do Baixo Sul (Coopafbasul), Gileno Araújo Santos, que fica em Ituberá e reúne mais de 1.500 associados de toda a região, incluindo Valença, a morte prematura das árvores, que chegam a quase 15 metros de altura, deve-se sobretudo à falta de cuidado na contenção da fusariose, fungos que atacam as raízes da planta e se espalham por toda uma roça.

Segundo ele, ainda não há uma relação comprovada da doença com o excesso de borrificação dos frutos. “Quando há apenas a perda das folhas, é preciso maior adubação, caso contrário ela perde produtividade e demora a recompor-se”, alerta o agrônomo. Para ele, é necessário  uma maior vigilância de um técnico especialista para controlar o desenvolver da planta, o que pode garantir uma colheita de melhor qualidade.

Hormônios em excesso

O processo nas grandes culturas é simples: na época da colheita, ao invés de se subir no pé e arrancar os frutos manualmente, o que acontecia há oito anos, borrifa-se uma mistura de hormônios para acelerar seu amadurecimento. Em três dias, os frutos já estão no chão, devidamente enrolados em lonas plásticas e sem o tradicional esforço de subir nas árvores. Estudos científicos não mostram danos ao organismo humano no consumo do cravo da índia colhido através da borrifação química, segundo informou a Ceplac. Mas o produto perde valor na hora da venda ao mercado externo, com preços até 30% menores.

O pequeno produtor Dony Altino, que hoje trabalha apenas com a comercialização do produto, diz que os fungos e doenças se espalham com muita facilidade. Há três anos ele plantou mil mudas de cravo-da-índia. Novecentas morreram. “As outras cem que sobreviveram eu deixei de lado, não vou lá nem para roçar o mato”, alega, desmotivado. Altino está há seis anos trabalhando como revendedor de cravo-da-índia na Feira Livre de Valença, com o apoio do pai. Compra os parcos sacos de 50 quilos que chegam raramente de pequenos agricultores e paga em dinheiro vivo. Quando o volume atinge de meia a uma tonelada, revende aos exportadores.

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Sacas de cravo-da-índia comercializados em Valença

Geraldo Bispo, de 65 anos, é um dos poucos resistentes nesta atividade agrícola de modo familiar, que apareceu na hora na entrevista na Feira Livre. Diz ele que começou ainda novo a trabalhar para grandes plantadores de cravo. “Sempre que chegavam as mudas, os proprietários me davam duas ou três delas. Foi assim que criei minha roça de cravo-da-índia, que hoje colho manualmente para aumentar o preço”, conta com orgulho e simplicidade de quem ainda sobrevive de uma agricultura que pede socorro.

Os maiores empreendedores da região não querem mostrar seus rostos nem  nomes. Com razão. Primeiro pela segurança. Um caminhão carregado com a especiaria pode valer até R$ 300 mil, o que faz dos criminosos autênticos assassinos. O Serviço de Investigação da Polícia Civil de Valença acompanha os casos e percebe um crescimento neste tipo de crime quando a cotação do produto está mais alta. De acordo com um investigador que também não quis se identificar, é muito difícil a recuperação dessas cargas roubadas. “Os ladrões desensacam rapidamente o produto, tornando impossível seu rastreamento, visto que o cravo-da-índia é igual em qualquer lugar”, disse à reportagem. “É raro o produtor contratar serviços extras de proteção quando embarcam a carga para o porto, o que facilita a ação dos bandidos”, continuou.

O produtor Daniel de Raimundo Luse passou por um sofrimento que podia ser evitado se houvesse mais segurança nas rodovias. Perdeu seu pai, morto em um latrocínio ocorrido em 12 de janeiro de 2018. A carga nunca mais foi encontrada. “A polícia deveria intensificar os trabalhos de investigação, a fim de desbaratar essa quadrilha que rouba até hoje na região e, principalmente, prender os receptadores”, argumenta. Além do pai, Luse já perdeu outras cargas de cravo-da-índia, corroborando as informações da Polícia Civil. Mesmo assim, continua investindo nos negócios. E o faz corretamente, usando o borrifador na quantidade certa e replantando mudas quando há necessidade. Colhe cerca de 10 toneladas todos os anos, sem os tradicionais intervalos de dois anos da maioria dos cultivadores, que exageram na aplicação do hormônio e não adubam corretamente a planta.

Em segundo lugar fica a reclamação pela falta de incentivos dos governos estadual e federal. Ninguém quer comprar briga com as autoridades responsáveis, mesmo estando com a razão. Não falam os nomes, mas falam a verdade. “Estamos regredindo muito rapidamente na produção de cravo-da-índia no Brasil devido à alta mortandade das árvores”, afirma um dos maiores exportadores do produto na Bahia. Culpa principalmente a forma de colheita feita no país, com uso indiscriminado de produtos químicos anabolizantes, como as baforadas de hormônio para o amadurecimento mais rápido e a queda ao chão do fruto das árvores. A colheita fica mais rápida e mais fácil, mas a árvore acaba se enfraquecendo e morrendo. “Uma árvore dessas, que pode dar até 20 quilos de cravo por ano, poderia chegar aos seus 50 a 60 anos de idade, rendendo frutos. Infelizmente elas estão morrendo prematuramente, às vezes nem chegando a dar frutos, e vendidas como lenha”, conclui.

Produtores como ele, ou seja, que não querem ter nomes expostos, são os que mais usam agrotóxicos para o amadurecimento rápido do fruto. Eles não veem saída para a colheita enquanto não houver uma nova tecnologia, talvez até mecanizada. O cultivo manual, embora seja o recomendado, não dá lucro ao grande produtor, pelo menos o lucro fácil e esperado. Isto porque cada trabalhador cobra em média R$ 50,00 por dia e colhe cerca de três quilos, o que renderia no mercado R$ 60,00. “Não teríamos lucro quase nenhum”, diz um dos empresários exportadores.

Isto não é bem a realidade. Conversando na Feira Livre de Valença com Adriano Santos, dono de 500 pés de cravo-da-índia, descobrimos que um trabalhador pode colher até 10 quilos por dia, se for bem remunerado. “Eu mesmo não sei ao certo quantos quilos eu colho, porque vou colhendo à medida que amadurece, completo 50 quilos, ensaco e já venho para a feira buscar meu dinheiro”, alegou Santos, talvez com medo de revelar sua atual condição financeira. Não quis nem tirar uma foto, para não ser identificado, embora tenha confirmado que sua lavoura fica em Sarapuí, a poucos quilômetros de Valença . O receio de lidar com um produto nobre, que pode render dólares ao Brasil, mas bastante visado pelos ladrões, e ao mesmo tempo defender o lucro rápido e fácil com o uso de hormônios, faz com que os produtores evitem aparecer na mídia. Preferem perder mais essa mina de ouro, tirando o máximo proveito dela enquanto ainda existe. Muitos desses grandes proprietários de terras no Baixo Sul baiano já estão investindo em outras atividades agrícolas, como o próprio cacau, desta vez com uma muda resistente à vassoura de bruxa. “Custa mais caro, mas compensa porque produz o ano inteiro”, afirma Daniel Luse.

Benefícios para as cidades produtoras

O resultado deste tipo de pensamento é o fim precoce de uma cultura que poderia trazer muito dinheiro para Valença, Taperoá, Nilo Peçanha, Ituberá, Camamu e Tancredo Neves, municípios onde há a exclusividade do plantio no Brasil. Não é o que fazem pequenos agricultores como Geraldo Bispo, que amarra os galhos da árvore com madeira e sobe em seus 15 metros de altura para a colheita. A própria família se une para não perder a oportunidade de colheita, que acaba sendo vendida a um preço um pouco superior, e sem custos da mão-de-obra.

É assim também o trabalho na Indonésia e Madagascar, maiores produtores do condimento, segundo dados do Wikipédia. A colheita é feita através de escadas, manualmente, sem machucar os galhos, o que possibilita colheitas anuais contínuas.

No Brasil, com o uso do pulverizante, a planta enfraquece e logo começa a receber fungos, que se espalham para outras árvores, invadindo lavouras até de quem colhe manualmente. Mesmo assim, ainda há soluções para conter o avanço da doença. “Basta circundar o pé danificado com calcário que o fungo não se espalha tão rapidamente”, explica Antônio José Fonseca, da Ceplac. Ele mesmo reconhece que não há incentivos para o manejo do cravo-da-índia no Brasil. “Nem todos os agricultores têm condições de adubar e cuidar das árvores doentes”, confessou.

Com isto, o produto que serve na culinária, nas indústrias de perfumaria e farmacêutica, além de aromatizantes para cigarros, acaba se esvaindo do solo baiano, dando espaço ao cultivo de itens tradicionais, como o cacau e a borracha, que mal servem para atender o mercado interno.

“Quando se trata de produto exportado, o dinheiro tem mais valor porque vem de fora e faz movimentar a economia de uma região, trazendo benefícios rápidos para toda a população, como aconteceu no século passado com o cacau e a borracha”, diz um outro grande produtor, que também prefere não se identificar. Este empresário conta que perdeu mais de 60% dos seus 12 mil pés. “Trabalhar com o cacau, mesmo que seja para o mercado interno, rende mais ao agricultor: em dois ou três anos ele já pode começar a colheita, contra os sete anos de uma árvore de cravo-da-índia e o risco de perdê-la prematuramente”, complementa.

Ao lado da Feira Livre, que funciona de segunda a sábado e tem maior movimento nas sextas-feiras, um quarteirão praticamente inteiro é dedicado à compra e venda de cravo-da-índia e outros produtos agrícolas. “As sacas de cacau ficam na frente das lojas, enquanto as de cravo-da-índia, que são mais valiosas, ficam nos fundos”, contou uma das vendedoras do local.

Quem não liga para a identificação é Ramiro Campelo de Queiroz, um dos maiores empresários da região, há muito comandando empreendimentos que vão de fazendas de Acácias a lojas de departamentos em Valença e Salvador, passando por hotéis e outras inovações. Valenciano com muito orgulho, reclama da falta de posicionamento político da cidade, da qual já foi prefeito duas vezes. “Valença é uma cidade que pretende ser turística, industrial, comercial e sede do agronegócio: acaba não sendo nenhuma delas por falta de investimento e planejamento”, diz. Para citar um exemplo de dedicação ele cita a vizinha Cairu, voltada exclusivamente ao turismo em seu arquipélago. Segundo cálculos de Queiroz, a arrecadação per capita de lá chega a R$ 4 mil anuais, enquanto em Valença, com uma população bem maior, essa renda não ultrapassa R$1,2 mil por habitante, por ano.

Mesmo não cultivando mais cravos da índia, ele lembra com saudosismo o aroma que o produto trazia para Valença, quando os pequenos agricultores traziam o fruto da roça para secar em frente às suas casas, no meio da rua. “Era uma época de menor violência, todos se conheciam, e o preço do cravo nem era muito atraente como agora”, relembra. Segundo ele, mesmo com esforços dos próprios agricultores, o cravo-da-índia cultivado no Baixo Sul baiano é de segunda ou terceira qualidade, merecendo um preço menor no mercado internacional. “Colocamos muito anabolizante no produto e mesmo assim, continuamos a exportar, bem menos que antes, mas ainda gera divisas para a região”, complementa.

Os números da decadência estão estampados no site do ministério da Economia, que desde 2019 encampou os trabalhos do antigo ministério da Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Em 2014, o Baixo Sul baiano ganhou US$ 51,1 milhões, com quase seis milhões de toneladas colhidas. Em 2016, os agricultores ainda arrecadaram US$ 26 milhões. De 2019 para 2020, o valor total caiu para US$ 19 milhões, com 4,1 toneladas de cravo colhidas. A tendência é só piorar.

“Temos capacidade de produzir 10 vezes mais se utilizarmos os procedimentos corretos e com incentivos financeiros”, finaliza o diretor da cooperativa de Ituberá. Segundo ele, há projetos de investimento aguardando aprovação no Banco do Nordeste. Há também pesquisadores das universidades federais de Cruz das Almas (BA), Lavras e Viçosa (MG), tentando descobrir um remédio eficaz para a fusariose. “A pandemia do coronavírus adiou tudo, tanto o financiamento quanto os estudos para controlar os fungos”, lamenta.

Os principais compradores do cravo-da-índia baiano são Cingapura, Emirados Árabes, Paquistão, México e Índia.

Da Redação

 

 

 

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