araken-galvao

Muito tempo depois – não frente a nenhum pelotão de fuzilamento, que seu período de inócua rebeldia se passara, mas prostrado em um leito de Centro de Tratamento de Oncologia –, ao lembrar-me de forma quase permanente da sentença de Guimarães Rosa, dita e redita pela boca de Riobaldo: “viver é muito perigoso”, é que descobri a incongruência expressa naquela afirmativa: porque viver nada mais era do que a preparação da morte. E se algo na vida implicava em morte, só podia ser perigoso. Então conclui que, talvez viver fosse tão-somente o aprendizado da morte – destino para onde todos nos dirigimos –, o que resultaria em uma insana crueldade, já que, por esta via, viver somente poderia ser mesmo muito perigoso, em particular se se tivesse em conta que o lugar aonde o traçado deste caminho nos conduz – e o faz até no ato nosso, muitas vezes mecânico, e fatal, de caminhar ou perambular, nos conduzirá mesmo ao fim da jornada existencial de cada um, à morte.

No entanto, esta conclusão pode também se relacionar com uma obra do meu amigo Alfredo Gonçalves de Lima Neto, uma vez que este escritor já falou sobre os encantos da morte, de certa forma entrando em conflito com outro, no caso, o escritor português José Saramago, que encantos nela não encontrara; apenas constatara as suas, dela – como ele costumava escrever –, intermitências, das quais ninguém estaria livre. Embora o escritor português – já falecido – possivelmente apenas desejasse sugerir que estas (ou aqueles que ele indicava) não passassem de uma impertinência do processo de viver, disfarçadamente ocultas no ato final da vida, ou seja: na fatalidade da própria morte.

No meu caso pessoal, posso ventar a possibilidade de que, enquanto vivo – e isso constato eu as vésperas de completar 80 anos –, jamais imaginei que o maior perigo existente no ato de viver, estivesse justamente no fato de que viver era apenas o ato de se caminhar em um único rumo, e que esse rumo levava inexoravelmente à morte. Podendo implicar isso que o viver de cada um nada mais era do que a preparação da morte. E como somente uma pessoa insana (ou muito desesperada) atenta contra a própria existência, em última análise todos nós éramos insanos ou estávamos sempre ao borde do desespero, já que caminhávamos, muitas vezes alegre e fagueiros, em direção à morte sem atinar sobre a fatalidade do gesto.

Para nada importava que ao percorrer esta senda passássemos por enganosos vales floridos, atravessados por rios caudalosos ou mesmo por regatos serenos, aprisionados por molduras de paisagens idílicas, recortadas ao fundo por abruptas montanhas, cobertas de frondosos bosques, porque todos os caminhos, embora ditos que levavam a Roma, na verdade levar-nos-ia tão-somente à morte.

Dito isso, à guisa de introdução, digo agora que durante o período do Carnaval, o de 2016 – o qual, como sói ocorrer na Bahia, lugar onde, segundo um dos seus governadores, o insólito sucede amiúde –, cuja duração é um desses casos intrigante e sem precedente donde quer que seja, o qual começou antes e terminou depois, minha mulher e eu, tivemos o prazer de receber a visita do casal, Andreia e Elieser Cesar, mais a filhinha dos dois, a tagarela Maria Cecília, o que nos proporcionou não só o ensejo de não ouvir, mesmo de forma longínqua o charivari comum a esta festa dedicada a Momo e a carne.

Esta visita – dizia – proporcionou-me belos momentos, isso enquanto as mulheres, a dele e a minha, conversavam sobre assuntos concernentes a elas, as mulheres (tema o qual sempre nos intriga, pois nunca o deciframos), nós conversávamos sobre literatura, assunto que o meu amigo é douto e ponderado e eu seu atento aprendiz. Conversamos principalmente sobre um livro de quase memórias (com a licença de Carlos Hector Cony), o qual eu tinha acabado de escrever), e buscava um título. Neste pormenor passamos quase todas as noites da estada deles, sem chegarmos a uma conclusão plausível.

Resulta que hoje, 13/02/2016, depois que eles voltaram a Salvador, despertei com a lembrança de um belo e emblemático verso de uma canção popular, o qual diz: “A gente mal nasce e começa a morrer”. Lembrança essa que me levou a dedução de que a vida era apenas um aprendizado da morte. Ou seja, se preferem, vivia-se para ir-se acostumando com a fatalidade do nosso próprio fim. Podia suceder que a morte no indivíduo se precipitasse ou mesmo fosse precipitada; podia ser ainda que longa espera; poderia ser a jornada empreendida pelo cidadão (ou pelo pária) para alcançar o inevitável desfecho.

Por via de tantas reflexões – umas pueris, outras mais ainda –, deduzi que em algumas pessoas fosse tão angustiante a espera da morte, que esta fosse precipitada por auto-gesto: aqueles praticados pelos suicidas – até daqueles suicidas, como o disse Manuel Bandeira, “que se matam sem explicações” –, desesperados, talvez, pela possibilidade de uma espera muito longa. Não impontava o pretexto deixado à posteridade, em cartas ou bilhetes.

Foi então que comuniquei ao meu amigo sobre a possibilidade do título “O Aprendizado da Morte”. Respondeu-me ele com aprovação, ainda que sem muita convicção, já que, partindo do seu acorde em relação a minha proposta, dava outras opções.

Foi então que achei descobrir que o que prejudicava a importância do título era o penduricalho “morte”, então me perguntei e, desta forma, agora perguntou a ele: Porque não apenas “O Aprendizado”? Assim, puro, obrigando ao leitor descobrir o sentido do título com a leitura do livro, e não o contrário, como podia ocorrer.

Chegado a este ponto, começando a imaginar o que não diriam outros amigos, como Moacir e Demos, por exemplo, os quais (junto com Alfredo) deixavam escapar para minha mulher comentários, do tipo: Galvão está sempre falando da morte.

Ora, pensei, próximo aos 80 anos, em que diabo devo pensar? Em preparar-me para o ENEM? Em casar-me ou comprar uma bicicleta? Em (por ser casado) sair para acampar com minha mulher no próximo feriado longo? Ir, no próximo domingo, almoçar na barraca da Jivanete na praia da Guaibim? Ficar o fim de semana em Salvador para ir comer ostras frescas na rua Fonte do boi, no Rio Vermelho?

Não. Não meus amigos nenhum desses programas me apetecem. O tempo de pensar neles e praticá-los já se passou para mim. Resta-me, além de escrever “estas mal traçadas linhas” para o nosso Valença Agora, falando de coisas alegres (poucas vezes) e me lamentado sobre a inflexibilidade da passagem do tempo.

Ontem minha mulher fez peixe assado no forno, estava lindo, acompanhava um arroz incrementado com aspargos e outras iguarias, as quais, em outros tempos eu as achava supimpas. Mas hoje, com o passar dos anos, até o paladar está desaparecendo, porém disse, por cortesia, a Euzedir e a Juscy. Elas tomaram vinho, eu arranjei uma desculpa, e tomei suco de laranja. Não tinha tomado nem o meu velho e querido uísque.

Mas, depois do almoço, fui fazer a sesta. Antes li, como sempre faço, antes de dormir, algumas páginas do livro sobre a Batalha de Stalingrado, que são apenas 904 páginas.

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