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É dito muitas vezes que a poesia está na alma humana. Não sei se tal é verdadeiro, sendo o mais certo que não, uma vez que – segundo dito popular: “Coração de gente é terra quem ninguém passeia” –, sendo lugar ignoto onde também pode haver surpresas, até algumas desagradáveis. Há sem nenhuma dúvida, via de regra, muita maldade na alma humana que eu, mesmo desejando que aquela afirmativa fosse verdade, tenho cá minhas dúvidas. No entanto, não posso deixar de concluir que momentos existem que a poesia abunda, seja na alma humana, na sua vida cotidiana – em instantes de óbvias ironias – ou mesmo, como diria um irreverente, em várias fases da vida humana ou do seu próprio corpo, inclusive nas suas nádegas, sejam elas abundantes ou magérrimas.

Tudo isso é dito, de modo jocoso, devido a uma resposta, um tanto malcriada, apesar de ser um belo poema, que recebi do meu amigo escritor, Alfredo Gonçalves de Lima Neto, devido a uma brincadeira que lhe fiz.

O editor e escritor Roberto Leal, em reunião da UBE, sem notar que estava fazendo poesia, disse: Leio toda manhã A Tarde. Talvez tenha sido: Leio a Tarde todas as manhãs. E eu, do auditório, pensei. Por certo ele, a noite vê os principais acontecimentos do dia, com destaque para as previsões de como será o tempo no dia anterior.

Anos antes, o escritor Carlos Magno, em breve locução, feita em uma cerimônia do Centro de Cultura Olívia Barradas, nesta nossa cidade, ao se referir a nós, escritores, afirmou que éramos companheiros de pena. No memento, não sei por qual razão, talvez até por sentir na própria pele – quiçá na alma –, pus-me a imaginar quão de verdade havia naquela anunciação. Inclusive chego a imaginar que tal ocorrência vinha-me a mente não por milagres da homografia – tão rica e ampla em nosso idioma –, mas por uma sublime e sutil ironia do seu enunciado, uma vez que nossa atividade artística, não só não recebe o devido apoio dos poderes públicos, uma vez que não pode haver arte sem haver mecenato, mas pela cruel realidade de que o sistema prima por incentivar o consumo de tudo que é supérfluo, desprezando tudo que seja benéfico ao engrandecimento do intelecto, uma vez que este benefício leva o cidadão a pensar (o quê? Não sei).

Pensando, não consumir coisas que são dispensáveis. Por outro lado, mesmo sabendo que quase já não se escrevia de pena, esta palavra tinha a cada ano seu significado reduzido. E se no passado relacionava-se mais com sofrimento, ultimamente era empregada como punição, o que não deixava de ser uma realidade. Nada mais justo do que se castigue – e com rigor – quem se atreva a pensar em arte e cultura, em particular semear livros a mão cheia como uma atividade que não seja perigosa.

O poeta gaúcho Jean Scharlau, meu dileto amigo, com plena consciência de seu talento poético, criou um verso no qual, ao falar da existência de uma contradição entre sua forma de ser em relação ao perpassar das horas, afirmou algo, mais ou menos, assim: “quando a noite chega, eu saio”.

Dessa forma, tínhamos um amigo que lia toda manhã a tarde; outro que se dirigia aos companheiros de pena, sem que ficasse claro o tipo de pena, para chegarmos ao poeta que sempre que a noite chegava ele saía. E, como isso, chegávamos a uma situação poética, passando por uma situação irônica, ao mesmo tempo em que chegávamos a duas situações irônicas, passando igualmente por duas situações próximas do humor.

E já que se falou em humor, deixa-me contar – antes de continuar – a história do aluno que foi advertido pelo professor que não toleraria cópias de matéria tiradas textualmente do Google. Este, o professor, ao receber o trabalho do dito aluno, encontrou: O Brasil descobriu Pedro Álvares Cabral do dia 12 de abril de 1500.

— Que asneira é esta, rapaz? – indagou o professor.

— É para não colocar textualmente, mestre.

— Zero!

— Mas o senhor não diz que a ordem dos fatores não altera o produto? Quando Cabral descobriu o Brasil, o Brasil também descobriu o Cabral. O 12 é o 21 ao contrário.

Voltando ao tema central, antes que a vaca vá pra o brejo, devo dizer que tudo isso me veio a mente devido a uma resposta que recebi do meu amigo Alfredo Gonçalves de Lima Neto, poeta e contista, além de pessoas muito sensível – quiçá bastante susceptível –, possivelmente devido a sua sensibilidade poética ou sua veia humorística, sempre propensa a pregar peças aos amigos.

Fiz-lhe uma brincadeira sobre a passagem do seu aniversário natalício, e ele, ocultando uma pequena mágoa, mandou-me um poema usando da homografia de um dos meus sobrenomes, Vaz, no caso, aproveitando para fazer blague com a segunda pessoa do presente do indicativo do verbo ir.

 

CARO AMIGO VAZ

OS AMIGOS FICAM/ CAROS PORQUE NOS CUSTA/ GUARDÁ-LOS NO COFRE DO CORAÇÃO./ CARO AMIGO VAZ,/ SE TE ESQUECE DE UM AMIGO CARO/ CARO TE CUSTA O ESQUECIMENTO,/ POIS, DIA CINCO DE ABRIL,/ DE QUALQUER ANO QUE SEJA,/ É DIA DE SAUDAR UM AMIGO/ QUE ORA TE SALDA O ESQUECIMENTO/ PERDOANDO A SUA MEMÓRIA/ DEVORADA PELOS ANOS VIVIDOS./ CARO AMIGO VAZ,/ SE NÃO LEMBRAS OU NÃO QUERES,/ AVIVO-TE AS BOAS LEMBRANÇAS,/ DIA CINCO DE ABRIL/ É DIA DE TEU AMIGO,/ LEMBRADO OU ESQUECIDO,/ AMIGO, ASSIM TE DIGO,/ AMIGO DO CORAÇÃO/ QUE BEM COMPREENDE O FATO/ DE ACEITAR NO QUADRO INGRATO/ ESTA DOENÇA DO ALEMÃO.

 

ALFREDO GONÇALVES

 

Pois é, fui brincar com um hábil homem de letras e recebi o troco na altura. Aliás, além da altura. Agora – depois de lembrar-me do episódio do Moacir, em quem uma profissional de odontologia se encrespou e mexeu no vespeiro, recebendo pronta resposta, só me resta, de forma mui humilde, pedir desculpas e dizer: Estava brindando, amigo Alfredo.

Um grande abraço.

 

 

© Araken Vaz Galvão

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