O site Valença Agora convida a professora Rebeca Vivas para o Dia Internacional Das Mulheres

Sobre bouquets, condescendência e luto – Rebeca Vivas

As muitas datas “comemorativas” que se sucedem ao longo da história (e que se anunciam nas prosaicas “folhinhas” que decoram as nossas cozinhas) não deixam de denotar, eventualmente, alguns lapsos de memória. No entanto, às vezes há lapsos de sentido, muito embora isto não necessariamente comprometa o valor simbólico dos marcos históricos que as datas pretendem “comemorar”.

São tantas as narrativas que dão sentido ao Dia Internacional da Mulher neste mês de março ao redor do mundo, que enquanto algumas apontam o dia 8, outras apontam o dia 25 do mesmo mês. Ambas as datas são definitivamente significativas, embora a primeira, oficial, indique o marco original de uma manifestação coletiva e organizada de mulheres enquanto classe trabalhadora. Mas muitos entre nós desconhecem o vínculo entre o Dia Internacional da Mulher e o dia 25 de março de 1911, quando um incêndio de enormes proporções na Triangle Shirtwaist Factory, cidade de Nova Iorque, ano de 1911, ceifou as vidas de 146 operárias. Uma inegável tragédia que marcou a memória coletiva da luta feminista porque evidenciava, num contexto de luta de classes, as terríveis condições de trabalho remunerado às quais muitas mulheres se submetiam.

Em nosso país, quando a tradição cultural, festiva, adjunta ao termo “data” o qualificador ”comemorativa”, ela reproduz, negligentemente, a ideia de que relembrar o passado é sempre celebrar o passado e em consequência, celebrar o ciclo que se abre do presente ao futuro. Mas celebrar o passado nem sempre convém. Pois, honrar aquilo que o passado evoca significa muitas vezes o oposto da celebração: convém enlutar-se, num exercício de respeito, de reflexão, em função deste tipo de consciência que não desperta um sentimento de alegria, mas um profundo sentimento de pesar. E quando nossos pais, patrões, esposos, colegas de trabalho, vizinhos, professores, entre outros concidadãos do gênero masculino (e às vezes também do feminino) decidem celebrar o Dia Internacional da Mulher oferecendo-nos flores, ainda que em lindos bouquets, estão apenas reforçando, conquanto inocentemente, o sentido fúnebre do momento: estão de algum modo oferecendo flores às mortas, mortas de fato ou em potencial.

E para que este texto não seja (des)qualificado pela aparente amargura da autora, a intenção aqui é apenas de demonstrar a incoerência entre a celebração de uma memória pública e a realidade constatável na vida privada. Segundo o último Mapa da Violência, no ano de 2013 o Brasil já era o quinto país em homicídios de mulheres, com ocorrências 2,4 vezes acima da média internacional. Entre 1980 a 2013 (inclua-se neste ínterim a promulgação da Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que visa coibir a violência doméstica contra as mulheres) as taxas de feminicídio nas unidades federativas (estados) cresceram 8,8%, enquanto nas capitais houve um decréscimo de 5,8%. Mas tal decréscimo não quer legitimar qualquer inclinação comemorativa: de acordo com os resultados do próprio Mapa da Violência, o feminicídio está em processo de interiorização. Ele não arrefeceu, está apenas mudando de território. Por esta razão, inclusive, a cidade de Valença deve manter-se em estado de alerta: das cidades baianas que aparecem com as maiores taxas médias no trágico ranking do feminicídio nacional, destacam-se municípios do Baixo Sul e Extremo Sul, como Porto Seguro, Alcobaça, Presidente Tancredo Neves, Ubaitaba, Medeiros Neto, entre outros.

Os dados do Mapa da Violência falam por si. A violência contra a mulher é um fato tão histórico quanto dramático, que deveria causar enorme constrangimento na sociedade brasileira contemporânea, tornando bouquets de flores o símbolo de uma condescendência ultrajante para quem as recebe. A grande luta empreendida pelas mulheres ao longo da história da humanidade em busca de direitos trabalhistas, civis, humanos enfim, reflete um desejo de igualdade que carrega consigo a própria essência da liberdade. Ora, o que é o homicídio senão o maior atentado contra a liberdade?

No alvorecer do século XX, liberdade era ter direito a representação política e melhores condições de trabalho. Coube ao sufrágio feminino inaugurar e mobilizar a globalização da militância pelos direitos civis das mulheres e espraiá-la pelo mundo. Ao longo do século XX, a liberdade foi sendo afirmada em outros campos da vida pública e principalmente privada: divórcio, reprodução controlada, aborto... lutar pela garantia das liberdades individuais das mulheres tornou-se irresistível até mesmo no Brasil, onde até os anos 1970 o famigerado direito de legítima defesa da honra estava assegurado aos cônjuges que, uma vez traídos, considerassem justo se voltar contra o direito à vida das “suas” mulheres. No final do século XX, afirmação da autonomia e da igualdade de direitos era igualmente notável no âmbito público e privado. Mas este novo lugar que as mulheres requeriam para si com cada vez mais veemência parecia demasiado perturbador: as reações não tardaram a aparecer.

Chegamos ao século XXI com um sopro de esperança, mas em estado de alerta. Se por um lado a luta pelos direitos das mulheres parece ter contagiado as gerações mais novas, tornando feminismo e empoderamento feminino expressões facilmente identificáveis no vocabulário da juventude – que aliás creio ser o verdadeiro motor da história – por outro lado, a sociedade brasileira tem testemunhado a ascensão de um discurso conservador, com frequência embebido em fobia e sustentado no sofisma de que o empoderamento feminino constitui uma ameaça à sociedade porque atinge o fundamento da estrutura familiar tradicional. Ora vejamos se não é a força ideológica desse discurso o que representa grave ameaça à luta pelos direitos das mulheres, porque limita os papeis que elas podem desempenhar numa sociedade democrática e subalternizam o papel fundamental dos Direitos Humanos nesta sociedade. Sim, meus senhores, os dados do Mapa da Violência falam por si.

Neste dia 8 de março, portanto, – ou no vindouro dia 25 de março – não celebremos o homicídio, culposo ou doloso. Não omitamos os elementos simbólicos que ajudaram a reproduzir a desigualdade de gênero no passado, que perduram no presente e arriscam o futuro. Não sejamos condescendentes com a violência, menos ainda com a de natureza simbólica, sutil, cotidiana. Enlutemo-nos. Abundam os túmulos e nos tem faltado o devido respeito, a devida reverência. Cidadania e representação plenas, eis o que queremos. Deixemos as flores às que não puderam lutar até aqui. Nós mesmas as entregaremos.

5 Respostas

  1. Marietta

    Reflexivo! Representativo! Empoderador! Compartilharei e levarei como aprendizado para vida! Obrigada Rebeca Vivas pela sua generosidade em compartilhar sua sabedoria (que degusto feliz!).

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