araken-galvao

Conversando com minha assistente, a senhorita Juscy (hoje praticamente minha filha), que dá seus primeiros passos em sua vida acadêmica, fazendo o mestrado, e estudando o fantástico na literatura, depois de ela ter travado sérios embates com Tzvetan Todorov e seguidores, encontrei-a um dia, quiçá próximo do desespero, em cujo olhar, no meu modo de entender, encerrava uma pergunta: Por que escrever sobre literatura fantástica (real maravilhoso ou realismo mágico) em pleno século XXI – principalmente depois de Cem Anos de Solidão –, se o absurdo da vida cotidiana em nossa época de consumo desenfreado, de crises econômicas e bolhas imobiliárias, das fraudes fabulosas, sempre impunes, supera a tudo que a mente dos maiores ficcionistas dessas escolas poderiam criar.

Falei-lhe, então que crises econômicas e das fraudes fabulosas, sempre impunes, sempre houve só que a grande imprensa, nunca denunciou porque era coisa da elite, mas que era preciso perseverar e não desistir nunca.

Só depois foi que lhe falei que se excluíssemos as sociedades estratificadas do Velho Mundo – onde se faz alvoroço a cada surgimento de um novo celular, com mil e uma funções, ou um computador “mágico” – (usando seus fabulosos meios de comunicação, com o objetivo de nos influenciar a seguir seus passos); se excluíssemos a aparição de uma novidade ou surpresa surgida principalmente nas letras da África Portuguesa (do tipo de um Mia Couto e de um José Eduardo Agualusa); ou se não tivéssemos ainda na América Hispânica nomes como Isabel Allende – de produção nessa área bastante reduzida –, Laura Esquivel – cuja obra não é das mais abundantes –, ou a esperança que poderá ser David Toscana com “O Último Leitor”, caberia mesmo indagar qual será o destino da literatura fantástica (do real maravilhoso) mágica ou absurda, surgida de forma tão promissora na América Latina no século XX. O Brasil, que nunca foi muito entusiasta desse tipo de literatura, com a morte dos seus três nomes de maior destaque (Cândido de Carvalho, Murilo Ribuão e J. J. Veiga), com Suassuna com a idade que tem; comigo... (Bem, eu não chego a contar muito...) pouco conseguindo publicar, tinha mesmo de confessar que, muitas vezes sentia vontade de começar a entoar um réquiem para o ‘trilha’ que um Jorge Luís Borges, um Felisberto Hernandez, um Garcia Márquez, um Alejo Carpentier, um Roa Bastos, abriram ‘nas vagas, como um íris no pélago profundo’. Que, em nosso desespero, era mesmo até de se pensar em entoar cânticos ao surgimento de obras – consideradas, não sem razão, como subliteratura –, do tipo “Harry Potter” ou “O Senhor dos Anéis” e similares, que uma verdadeira caterva, esperta oportunista, lança todo ano, como ardilosas arapucas, que atrai incautos consumidores. Mas que tem, pelo menos, ainda que de forma canhestra, a pretensão de trilhar pelos caminhos da imaginação, refúgio derradeiro onde o homem – hoje mais do que no tempo dos deuses gregos, ou no tempo das cavernas – ainda pode se ocultar, protegendo-se da linguagem estúpida e mutilada da internet, ou das chamadas inoportunas do celular em lugares públicos.

Mas então, se sucumbisse ao justo desespero de minha assistente, teria que parar de escrever. Afinal, por que continuar navegando por aquelas trilhas procelosas? Não estaria dessa forma arriscando-me a morrer afogado e no anonimato? Foi então que pensei que o fantástico na literatura só se tornou possível porque antes, muito antes, sem que ninguém soubesse, ele já era parte integrante, fundamental, intrínseca à vida humana.

Em uma época bem delimitada da história da humanidade, ali entre a pedra lascada e a polida, um homem (ou hominídeo?), necessitando explicar seus constantes fracassos no exercício da caça, fazendo-o, na esperança de justificar sua inabilidade, frente aos seus pares, naquele importante mister, cujo sucesso implicava na sobrevivência, sem querer, ou seja, sem nenhuma intenção pré-determinada, criou o fantástico. No caso, na narrativa oral ou gutural, pois não se tem certeza hoje se as palavras já tinham sido criadas, refiro-me ao som oral que as delimitariam – os sinais ou caracteres que um dia seriam gráficos, com certeza não existiam e, passaram alguns milhares de anos para que fossem criados.

Aquele homem(?), justificando sua inabilidade na arte da caça – na arte da sobrevivência, portanto – criou o fantástico, na forma de que não era ele que era inábil, mas os animais com os quais topava, e que deveria ser caçados, que eram fantásticos, mágicos, dissolviam-se frente aos seus olhos, quando não tinha a forma de um estranho monstro que soltava fogo pela ventas. Era uma verdadeira quimera, ou seja, algo assim como um animal com a cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de dragão. Talvez um monstro com rosto de mulher e corpo de abutre, impossível de ser abatido. Ele não era um caçador ruim, só não tinha culpa de se defrontar apenas com animais fabulosos, fantásticos.
Aquele homem (?) e sua plateia ouvinte, sequer imaginaria que alguns milhares de anos depois, outro homem de nome Jorge Luís Borges, falaria em um cruel bastardo soma de um touro, uma rosa e uma tempestade, sem que ninguém o julgasse fabulista, muito menos um exagerado ou mentiroso.

E por falar em milhares de anos, passado séculos em que aqueles fatos ocorreram, um árabe (ou vários) fascinou o mundo (e continua fascinando), contando uma história desenrolada em mil e uma noites, a qual poderia ser muito bem a primeira história sobre uma prática bastante comum em nossos dias, de assassinato em série, conhecida pelo termo do inglês: serial killer. Também muitos anos, possivelmente depois, um homem de gênio, desprovido de visão em seus olhos, mas com o coração transbordante de luz, escreveu a Ilíada e a Odisséia. Mais tarde, também muitos anos depois daquele fato, outro homem, um guerreiro, este privado de uma mão, escreveu Don Quijote de la Mancha, e o mundo nunca mais foi o mesmo.

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