Valença cresce deixando imóveis antigos em desamparo

Valença. De povoado do Una, pertencente à Cairu, à cidade polo do Baixo Sul da Bahia são quase 300 anos. Três séculos de história que, aos poucos, vai cedendo lugar à modernidade. Natural que casarões antigos, sobretudo os de estilo neoclássicos em diante, deem espaço para a construção de novos edifícios, novos comércios e novas moradias, e até mesmo estacionamentos. Natural também que alguns prédios sejam conservados, quem sabe até transformados em museus, lembrando que a cidade, com 100 mil habitantes, não possui nenhum. Só o que está a olhos vistos, exposto em sequência, a céu aberto, para compor paisagens belíssimas, dignas de fotos dos turistas que passam pelo cais.

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Prédio que abriga o Legislativo valenciano está interditado por riscos em sua infraestrutura (Foto: Ney Doyle/JVA)

São milhares deles por ano, muitos estrangeiros, que se encantam com os prédios da orla do Rio Una, a começar pelo mais famoso: o Paço da Câmara Municipal, construído em 1848, inaugurado no ano seguinte e adquirido pela Câmara Legislativa em 1878. Ao lado, dois casarões do início do século passado, bem conservados, pertencentes à família Cristóvam Fonseca, o patriarca com seus 90 anos. Foi dele a  ideia de transformar o espaço interno em mercado de “secos e molhados”. Hoje, seu filho Gonçalo Fonseca toma conta de uma distribuidora de bebidas, que surgiu após o fechamento do comércio de alimentos, no mesmo local. A parte externa dos dois prédios, que também seguem o modelo neoclássico, está impecável. E ainda vai receber nova demão de tinta a partir de março. É o que promete o empresário. Os quartos de cima estão abarrotados de caixas de cervejas e vinhos. Ninguém dorme mais ali. “Os prédios estão conservados porque trabalhamos e dependemos dessa estrutura física para nossa sobrevivência”, diz Gonçalo, frisando que pretende manter tudo do jeito que está, sem novas locações, sem mais comércios na parte de baixo e, principalmente, sem a possibilidade de venda do imóvel. “De vez em quando vejo os turistas do outro lado do rio tirando fotos do conjunto arquitetônico, que inclui a antiga Câmara Municipal, e isto me traz alegria, saber que nosso casario está espalhado pelo mundo inteiro”, complementa.

Casarões da família Cristóvam Fonseca em bom estado de conservação (Foto: Ney Doyle/JVA)

Muitos proprietários de casarões antigos desejam preservá-los para contribuir com a memória da cidade. O novo prefeito, Jairo Baptista, tem o mesmo sentimento, mesmo ideal para os prédios públicos. O problema todo está na falta de recursos e nos altos custos exigidos para uma reforma, isto valendo tanto para prédios particulares quanto públicos.

Numa conversa descontraída com o prefeito pelo calçadão da cidade, parando para cumprimentar uns e outros, acompanhado apenas do que parecia ser sua secretária, Jairo Baptista tem o desejo de conservar todo o patrimônio público de Valença. Mesmo sem completar um mês de governo, conta a realidade dos fatos, que já eram conhecidos dos seus tempos de vereança: faltam recursos. Aliás, a falta de verba pública para novas construções no setor de restauração não é exclusiva de Valença, mas de todo o país. Os prefeitos de Salvador e de Ouro Preto (MG) que o digam.

Mas Jairo é persistente. “A Câmara Municipal voltará a ser aberta ao público, só não tenho ainda a previsão de quando isto irá acontecer”, disse, convicto da importância do visual arquitetônico que compõe a orla. Um perigo de desabamento da claraboia do edifício colocou em risco os frequentadores do local, tanto cidadãos quanto os servidores da casa. Em 2019, preferiram mudar-se provisoriamente para a rua Vereador Antônio Souza, lacrando a entrada do principal cartão postal de Valença. “A questão é financeira: tenho compromissos com o pagamento do funcionalismo, assim como a manutenção de contratos antigos”, reforçou o prefeito, novamente acenando para a população e para os trabalhadores do comércio. Todos eram unânimes em desejar-lhe sucesso para estes próximos quatros anos de mandato.

Enquanto Jairo Baptista entrava na Caixa Econômica Federal, a reportagem do Jornal Valença Agora se preparava para continuar seu caminho, em busca de novos entrevistados e velhos casarões. Antes, porém, chegaram a uma conclusão em comum: trazer novos investimentos para a cidade, novos empreendedores, o que está sendo anunciado semanalmente. “Já vieram os portugueses, agora vêm os franceses. Grupos de investidores como estes vão gerar renda, trabalho e impostos”, afirmou, antes de entrar no banco. Com recursos em caixa, a claraboia da Câmara será a primeira a ser restaurada. É uma promessa do prefeito.

Sonho de museu - Não foi preciso andar muito, depois do encontro com o Jairo Baptista. Na praça  Dois de Julho, o primeiro casarão de esquina parecia abandonado. De apenas um pavimento e quatro janelas em cada lateral, todas hermeticamente fechadas, vê-se o mato crescer no telhado. As paredes estão desbotadas, de cor quase nenhuma. Olhando mais atentamente, uma caixa de ferramentas e um lençol estendido no corredor de entrada mostrava que ali era habitado. E quem chegou à porta foi o proprietário do imóvel, José Catarino, acompanhado de sua esposa. Foi o primeiro café e o primeiro copo d’água servidos gentilmente pelo casal. “Deixamos tudo trancado aqui na frente por motivo de segurança, já que ocupamos mais a parte de trás da casa”, disse, informando ainda que tudo foi construído pelo avô de criação do atual proprietário, Gilberto Ferreira Paiva, há mais de 120 anos.

“Meu sonho é ganhar na mega sena e transformar este local em museu”, alegou José Catarino. “Ele joga toda semana na loteria, sonhando com este projeto”, confirmou sua esposa.

Proprietário José Catarino sonha em transformar casarão em um museu (Foto: Ney Doyle/JVA)

Mais uma xícara de café e Seu Catarino foi soltando a língua. Para ele, a manutenção da casa, como construída pelo avô, é dispendiosa. “Vou reformar as paredes e o telhado ainda este ano. Só de material acredito gastar uns 20 mil (reais)”, calcula o aposentado. “Pra ficar bom mesmo, vou precisar de uns 50 mil. Não tenho de onde tirar”, confessou. Como o imóvel não é tombado, o sonho do museu torna-se cada dia mais improvável. “Aparecendo um comprador, eu vendo, sou o único herdeiro, e o próximo proprietário que construa um belo prédio de apartamentos no lugar”, consolou-se junto à esposa.

Outro projeto de museu, ainda em fase de memorial, mas com lei já promulgada, se encontra na antiga Câmara Municipal, ainda interditada. A pesquisadora Janete Pereira de Sousa, servidora pública há 25 anos, tenta junto ao presidente do Legislativo, vereador Fabrício Lemos, uma verba extra para implementar a primeira biblioteca pública da cidade. “Mas eu sei que no início de governo não há recursos para quase nada, mesmo assim, não desisto de um acervo particular”, afirmou a historiadora.

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Grupo Escolar Conselheiro Zacarias com fachada de 1944 (Foto: Ney Doyle/JVA)

Mais 20 metros de caminhada, ainda na Rua Dois de Julho, o Grupo Escolar Conselheiro Zacarias merecia boas fotos. Sua fachada é imponente, datada de 1944, e mantém-se estável em termos de conservação, pelo menos enquanto não voltarem as aulas presenciais. Todo o terreno da escola, assim como uma ajuda na construção, foi doado pelo vizinho Rodolfo Isauro Dantas, juiz do Trabalho em Valença, pessoa respeitada também como advogado, falecido há pelo menos 20 anos. Quem conta a história é a filha Alfa Dantas Cabral, que mora numa casa mais moderna, à direita do colégio e à esquerda de outro casarão, também pertencente a sua família. Mais café, que já não descia mais como deveria, mas a água gelada servida foi um alívio. A gentileza faz parte da tradição valenciana, uma cidade que cresce, mas que ainda mantém costumes do interior, como a simplicidade e a disposição em atender visitantes.

Casarão pertencente a família de Alfa (Foto: Ney Doyle/JVA)

Alfa não se cansou de procurar o álbum de fotos antigas da família. Prometeu enviar ao jornal depois. Com 62 anos, relembra sua infância, nascida e criada no casarão ao lado, agora fechado para evitar assaltos. “Eram festas quase todas as semanas, o terreno imenso para as crianças brincarem, terreno que o pai foi doando aos poucos, a familiares e amigos. Foi uma forma que ele achou de proteger a família, cercando a área por vizinhos, ao mesmo tempo em que ajudava as pessoas”, lembra com nostalgia da bondade do pai e sua preocupação com a segurança da família. Cada filho pôde construir sua casa no terreno, e até os netos do Dr. Rodolfo já têm moradia fixa no local. “Hoje mesmo levei meus sobrinhos para ver as galinhas e colher uns ovos no casarão antigo”, sorri a herdeira.

Tanto Alfa como o irmão, que mora em Salvador, ainda não sabem o que fazer com o casarão antigo, de 1924. Pretendem conservá-lo da melhor maneira possível. Mas o dinheiro para a manutenção e conservação continua sendo o principal entrave para que o imóvel não se transforme em ruínas.

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Casarões da Praça da República, centro de Valença (Foto: Ney Doyle/JVA)

Voltando ao centro, em direção à Praça da República, mais casarões imponentes. De um lado, três se mantêm com o aluguel do comércio no andar térreo. Um deles, segundo os comerciantes, deve começar uma reforma em breve. As madeiras usadas na construção foram retiradas da praça em frente e estão até hoje à mostra no lado interno. Sustentam todo o primeiro andar.

Socorro! As notícias mais tristes não ficam muito longe dali. Do outro lado da praça, próximo aos Correios, o antigo Theatro Municipal, de 1910, pede socorro urgente. Dona Ângela, que tem um carrinho de lanches em frente , viu alguns trabalhadores medirem a fachada do teatro, que também já foi cinema. “Foram embora e nunca mais voltaram”, disse, com olhar de tristeza. O mato do teatro já invadiu as janelas.

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Theatro Municipal foi inaugurado em 1910. Está há anos em estado de abandono (Foto: Ney Doyle/JVA)

Outro monumento que pede socorro é a antiga cadeia pública, monumento ainda não tombado, na rua que sobe para a Matriz Coração de Jesus. Segundo alguns frequentadores do local, a cadeia serviu de livraria até 2018, quando fechou de vez. Aparentemente, a única coisa que sobrou da prisão foi a fachada. “Não podemos deixar um monumento tão bonito, que pode servir de visitação de turistas, ir ao chão e desaparecer”, reclama Celeste Martinez, referência em artes e literatura de Valença.

Prédio que abrigava a antiga cadeia pública (Foto: Ney Doyle/JVA)

Mais casarões antigos foram encontrados dando uma volta pela região. Chamou atenção o estado lastimável da sede do Sindicato dos Estivadores de Valença e Ituberá, com portões fechados há anos. Seu presidente, Natanael Rufino Costa, que perdeu as duas pernas por não se tratar direito de diabetes, há dois anos, hoje espera ajuda dos governantes para a reforma. “Aquela casa já foi assaltada 13 vezes, perdemos aparelhagem de som, mobília, gravadores. Só o Poder Público para nos ajudar neste momento”, disse, sentando em sua cama, onde passa a maior parte do dia.

Antiga Sede dos Estivadores de Valença e Ituberá (Foto: Ney Doyle)

Os estivadores e arrumadores de Valença deram uma contribuição importante para o crescimento da cidade e das ilhas do arquipélago de Tinharé. Mas isto é outra história, que o Valença Agora pretende contar em suas próximas edições. Por enquanto, a torcida é que novos investimentos cheguem o mais breve possível à Valença. A cidade precisa crescer, dar empregos e manter sua memória. Tudo isto e mais a vacinação contra a Covid-19 de sua população.

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